Quem vivia aqui antes de nós? Uma professora da rede pública questiona estereótipos sobre povos indígenas

Cinthya Verástegui*

Créditos – Cinthya Verástegui

O texto a seguir é uma versão jornalística do artigo acadêmico Culturas indígenas na escola: desafios e (re)descobertas para uma educação antirracista, publicado na revista Veras. A versão original pode ser lida aqui.   

É comum trazer à tona a questão racial a partir das relações de dominação e assimilação que se estabeleceram com a diáspora africana no Brasil e os processos de escravidão do período colonial.

Mas é importante ressaltar que, antes da chegada desses povos que contribuíram, e muito, para a formação da cultura brasileira, viviam aqui outros inúmeros povos, que também foram subjugados e lutaram por seus territórios e liberdade durante o processo de invasão portuguesa. 

A causa indígena apresenta uma situação complexa em relação ao racismo, que é o preconceito enraizado e expresso através de termos pejorativos, além da invisibilidade dentro da sociedade e também, por vezes, dentro da própria pauta da educação antirracista.

Por meio da criação da Lei 11.645/08 e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), tornou-se obrigatório o ensino das culturas afrobrasileiras e indígenas, que passaram a integrar os chamados “temas contemporâneos”, que devem ser incorporados aos currículos de maneira “preferencialmente transversal e integradora”.

Mas abordar a temática de identidade racial e pluriétnica é complexo não somente pela cultura escolar, como também pela necessária ação do educador. Este não deve incorrer numa abordagem multicultural prescritiva, que recaia numa política assimilacionista da questão multicultural. Por isso, são importantes as experiências pessoais que tomam como objeto de pesquisa o desenvolvimento de trabalhos em sala de aula. É o que busco fazer aqui.

Ao observar as interações entre as crianças do Ensino Fundamental em uma unidade de ensino do município de Cotia, na Grande São Paulo, percebeu-se não somente um conhecimento raso e estereotipado sobre as culturas indígenas brasileiras, mas também sobre as próprias identidades das crianças. Elas se consideravam majoritariamente “brancas”, mas promoviam preconceito racial entre si, por meio de comentários pejorativos em momentos de brincadeiras ou discussões.

Por isso, objetivou-se desenvolver um trabalho com as turmas de 4º ano que possibilitasse reconstruir suas visões sobre as culturas indígenas, o reconhecimento da presença destas no município e na própria ancestralidade dos estudantes.

A desconstrução de preconceitos em quatro tempos

O trabalho pedagógico se dividiu em quatro momentos: 

  • História pessoal e história do Brasil
  • Questões regionais: história de Cotia
  • Diversidade indígena
  • Povos indígenas na atualidade.

Na primeira etapa, iniciamos com algumas perguntas para observar melhor os conhecimentos prévios das crianças: Quem “descobriu” o Brasil? Quem são os “índios”? Ainda há indígenas no Brasil? Como vivem esses povos?

As respostas: “Foi Pedro Álvares Cabral!”; “Foram os portugueses”; “Acho que não tem mais índio”; “Eu acho que tem lá na floresta”.

Seguiu-se a leitura compartilhada de textos do livro didático que apresentavam a visão colonialista pela perspectiva europeia, abordando a extração do pau-brasil e as necessidades da Coroa portuguesa. Indagamos: “Imaginem pessoas estranhas chegando nas casas de vocês para pegar coisas e levar embora. Como se sentiriam?”

As crianças se alvoroçaram com a proposta, demonstrando não gostarem dessa “invasão”. Isso revela a importância de comparações que tragam o conhecimento de forma concreta, de acordo com o que as crianças já conhecem no seu cotidiano.

Pediu-se, em seguida, uma pesquisa com os familiares sobre a origem de seus sobrenomes – além da construção da árvore genealógica de cada estudante. Percebeu-se a diversidade nos sobrenomes das crianças, com a grande presença de “Souzas”, “Silvas” e “Santos”, marcas da colonização portuguesa no Brasil.

Algumas crianças descobriram em suas pesquisas serem descendentes de indígenas. Desconheciam a origem específica do povo pertencente, mas demonstravam se sentir seguras em afirmar suas ancestralidades.

Um segundo momento envolveu a história de Cotia. Textos de pesquisadores da história da região informaram que o nome da cidade deriva de uma palavra indígena: koty, que significaria ponto de encontro ou casa.

Nosso município era habitado por indígenas da etnia carijó, subgrupo da etnia guarani, e situava-se na rota Peabiru, trajeto comercial indígena que passava pelo Paraguai e cidades brasileiras, caso da atual Sorocaba.

Ressalta-se aqui a visibilidade dada a uma história que foi apagada nas escolas do município, e que antecede o momento de sua fundação, em 1856.

Na terceira etapa, os trabalhos na escola se debruçaram sobre os povos que viviam aqui antes do período colonial, ressaltando a diversidade étnica e a revisão de figuras como Raposo Tavares. O bandeirante, que tem seu nome na principal rodovia que corta o município de Cotia, foi responsável pela escravização e morte de populações indígenas nessa região.

Ao refletir sobre o outro lado da história, as crianças começaram a questionar a visão europeia de desenvolvimento pautada na invasão e escravidão, passando a formular, em conjunto, novas hipóteses sobre a questão indígena no Brasil.

Para tanto, seria necessário conhecer as populações indígenas, o que culminou em um momento de pesquisas em sites sobre a diversidade indígena brasileira.

Um quarto momento se desenvolveu a partir de vídeos e imagens de personalidades indígenas na atualidade. Entre essas, destaque para o grupo de rap indígena Oz Guarani e a para a artista Katu, que pertencem ao povo guarani de São Paulo. O objetivo foi mostrar a presença indígena próxima ao município de Cotia na atualidade – não só geograficamente, mas culturalmente.

Algumas crianças analisaram, então, as semelhanças e diferenças entre povos que vivem isolados e povos que vivem nas capitais. O conceito de cultura foi novamente trabalhado em sala, reforçando a influência indígena na cultura brasileira, da mesma forma que a cultura não indígena influencia a indígena.

Ao final do trabalho, os alunos produziram obras inspiradas nos grafismos de diferentes etnias, além de diversas formas de arte indígena: cerâmica, brinquedos, colares e figuras de barbante. A produção fez parte de uma exposição na escola.

O que as crianças aprenderam – e no que é preciso avançar

Com o desenvolvimento deste trabalho, pudemos alcançar parcialmente as metas e estratégias estabelecidas. Foi possível, por exemplo, ressignificar conceitos sobre os povos indígenas. As turmas passaram a se referir e identificá-los como “povos indígenas brasileiros” ou “povos originários”, reconhecendo sua presença e necessidade da garantia de seus direitos. Também se tornou visível a redução de conflitos com termos raciais pejorativos (cor da pele, tipo do cabelo) entre os estudantes. 

Porém, para uma ação que atenda plenamente aos objetivos da educação antirracista e decolonial, é necessário compreender o caráter da colonialidade na sociedade de maneira estrutural. Isso requer um trabalho contínuo e coletivo de reconstrução de visão de mundo, considerando a abrangência da Lei 11.645/08 ao longo de toda a Educação Básica, o investimento na formação continuada de professores e a ampla distribuição de materiais didáticos construídos sob a perspectiva indígena. Dar voz para as falas que por séculos foram silenciadas e fazê-las ecoar no ambiente escolar é extremamente necessário para desenvolver relações de alteridade, aprendidas a partir dos saberes ancestrais dos muitos povos indígenas brasileiros.

*Cinthya Verástegui é pedagoga, professora pela Secretaria Municipal de Educação de Cotia (SP)

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.