No faz de conta, a construção do olhar para a diversidade

Por Paula Peres

Em turmas diversas, como as do Verinha da unidade Alvilândia, aspectos sobre a convivência com o multiculturalismo e a diversidade racial são colocados de forma intencional no currículo da escola e ganham forma nos planejamentos dos professores. Ao organizar os materiais e o espaço com essa intenção, surgem oportunidades das crianças se relacionarem com elas de forma natural no dia a dia da escola. Foi o que aconteceu na turma do G1, sob responsabilidade das educadoras Nathália Puccinelli e Sofia Fontana Alves. “No início do ano, a gente pensou com bastante cuidado a organização da sala e a escolha dos materiais. Como a maioria das crianças ainda nem fala, a organização do espaço muitas vezes vai definir o trabalho do ano inteiro”, explica a professora Sofia, uma das educadoras regentes da turma.

Nessa faixa etária, os bebês ainda estão descobrindo o mundo que existe fora de suas casas, e devem vivenciar experiências que os conectem com a compreensão e o cuidado de si e do outro. As professoras decidiram, então, olhar com mais intencionalidade para objetos que sempre estiveram entre as possibilidades de brinquedos das turmas: bonecos e bonecas negros. “Nos apoiamos no pensamento da Clélia Rosa, educadora antirracista, de que é importante as crianças aprenderem que corpos negros precisam de cuidado”, defende Nathália. O trabalho, assim, tem relação direta com a corporeidade, um dos valores civilizatórios afro-brasileiros.

Para apresentar as bonecas e os bonecos aos pequenos, as educadoras os deixaram disponíveis em um dos espaços organizados na sala, durante todo o ano letivo, junto com bonecos brancos e outros brinquedos que faziam referência às atividades do cotidiano. Ao longo do tempo, elas puderam observar como as relações com esses brinquedos foram sendo construídas pelas crianças da turma.

Por meio das brincadeiras, as crianças reproduzem as vivências de cuidado pelas quais elas passam. Por exemplo: ao cuidar da boneca, elas assumem o papel dos pais, responsáveis e outros adultos; nesses casos, a ação delas com relação ao brinquedo tem relação direta com a maneira como elas  são cuidadas. “Observamos crianças colocando a boneca no berço, algumas vezes entrando junto, dando beijinho, cobrindo com uma cobertinha. É uma relação muito bonita que se estabelece”, lembra Sofia.

Com o passar dos meses, as crianças foram crescendo e trazendo novos elementos para essa brincadeira. Enquanto no primeiro semestre a brincadeira era mais de carregar e cuidar, no segundo semestre já apareceram construções de narrativas, possível de notar em falas como “Vou levar o nenê para passear” e “Vem comigo dar banho”. Essas narrativas possibilitam a importante construção do faz de conta para essa faixa etária. “O faz de conta ajuda a criança a elaborar o mundo que ela vai enxergando”, reflete Nathália.

A professora ainda se lembra de outro episódio que expandiu o seu olhar sobre as brincadeiras. “Uma das alunas, parda, filha de pai negro e mãe branca, pegou duas bonecas pretas e uma branca, levou até à professora e indicou ‘Esse é o papai, essa é a mamãe e essa sou eu’”, conta. Para além da apresentação de corpos de tons de pele diversos, a professora percebeu que aquelas bonecas também eram a possibilidade das crianças se enxergarem e enxergarem outras pessoas, como suas próprias famílias. Mais uma dimensão fundamental na construção do conhecimento sobre si e sobre o outro.

Segundo Nathália, essa escolha de que as crianças se relacionassem diariamente com referências pretas foi proposital. “O que é vivido cotidianamente vai ganhando mais tônus. Quanto mais você se relaciona, mais aquilo vai sendo interiorizado, vai fazendo parte de você.”

Além dos brinquedos, as professoras também fizeram uma seleção de livros que trouxessem personagens negros como protagonistas, como Ops, de Marilda Castanha; Cadê?, de Graça Lima; Bola vermelha, de Vanina Starkoff; e Iori descobre o Sol, o Sol descobre Iori”, de Oswaldo Faustino, para o espaço da leitura. Por meio da literatura, os pequenos experimentam o sentimento de pertencimento a um grupo e o respeito a diferentes tradições culturais e estéticas. Oferecer obras literárias diversas, para além do que já é tradicionalmente valorizado pela sociedade, expande ainda mais essas referências que apoiam a construção de suas próprias identidades.

Conforme as crianças vão crescendo e se desenvolvendo na dimensão da compreensão de si e do outro, elas conseguem elaborar melhor as próprias impressões. Foi o que aconteceu com a turma do G3. A partir de diferentes atividades envolvendo o livro  O vestido de Afiya, de James Berry, as crianças se apegaram à personagem, inventaram sua biografia e imaginaram tudo o que poderiam fazer se ela fosse “real”. De acordo com Karina Crespo e Tatiana Vieira, docentes responsáveis pelo grupo, a intenção era que as crianças pudessem, com base na literatura, ampliar sua dimensão estética, encontrar representatividade e pensar sobre si e o mundo.

Com o tempo, as crianças verbalizaram indícios de que estavam se sentindo mais íntimas da personagem, “buscando dar significado às suas vivências, relacionando-as com as suas próprias experiências de vida”, contam as professoras.

Uma boneca de pano confeccionada com apoio de toda a comunidade da escola, com um vestido igual ao da protagonista do livro, foi a materialização que as crianças precisavam para realizar tudo o que viviam apenas em sua imaginação, cheios de gestos de afeto, carinho e cuidado com a “Afiya da vida real”. As crianças puderam levar a boneca inspirada em Afiya para suas casas e, assim, compartilhar com ela as vivências que possuem com suas famílias. “Afiya e as crianças guardam em seus corpos as memórias do nosso grupo”, conta a professora Karina.

A boneca Afiya se tornou uma grande parceira da turma, participando de brincadeiras dentro e fora da escola.

Quando os pequenos se acostumam a cuidar desde cedo de corpos de diferentes tons de pele, as conexões se tornam mais fáceis e verdadeiras. “As crianças vão olhando para aqueles corpos como corpos que também precisam de carinho e afeto”, concluem as professoras.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.