Literatura, música e brincadeiras: trocas culturais entre Brasil e Moçambique

Por Nairim Bernardo

O trabalho com músicas e brincadeiras é uma estratégia importante para o processo de alfabetização. Na Base Nacional Comum Curricular, documento normativo que define as aprendizagens essenciais para todos os alunos da Educação Básica, o trabalho com corpo, movimento e música aparece indicado para a Educação Infantil e para o Ensino Fundamental em diversos trechos.

Na Escola Vera Cruz, as professoras Luiza Gaia e Patrícia Linhares conseguiram articular músicas, brincadeiras, literatura e pesquisa cultural em um interessante projeto com os alunos do 1º ano. O que começou com o compartilhamento de muitas canções e brincadeiras de roda que constituem o repertório afetivo da turma passou por um intercâmbio cultural com “correspondentes” em Moçambique e por um projeto de pesquisa sobre a diversidade da língua portuguesa nos países que a falam.

“As crianças ficaram, especialmente, mobilizadas com esse percurso coletivo. A cada música cantada e brincadeira dançada, eram visíveis a animação e o encanto. Elas passaram a cantarolar em muitos momentos de nosso cotidiano, como no recreio, na hora do lanche ou no ônibus, durante nossos passeios”, comentam as professoras Luiza e Patrícia e a orientadora Juliana Parreira sobre a criação do Nosso Cancioneiro.

À medida que as músicas foram se tornando familiares ao grupo, iniciou-se um trabalho a respeito do funcionamento do sistema de escrita da língua portuguesa para que as crianças compreendessem como escrever e ler um texto. Desse modo, elas puderam aprender na prática que a história social e cultural se articulam com um importante aspecto de sua vida escolar, a alfabetização. “Quando o repertório do grupo foi tecido, abrimos nossos olhos e corações para ensinar e aprender brincadeiras com outras pessoas que compõem nossa comunidade brincante. Com a Nayara, que atua na secretaria da escola, aprendemos brincadeiras de barbante e com Ana Célia, professora de outro grupo de 1º ano, nos encantamos com as canções e brincadeiras maranhenses”, relembram as professoras. “A possibilidade de aprender com as pessoas mais velhas e de registrar por escrito a sabedoria oral, foram questões abordadas com as crianças.”

Uma conversa além-mar

O trabalho com as brincadeiras, que já estava se desenvolvendo bem, ficou ainda mais rico com a possibilidade da realização de uma troca cultural com a professora do Vera Cruz Sheila Perina, que foi a Moçambique para a pesquisa de seu doutorado. De Maputo, ela enviou um vídeo que mostrava crianças dançando passos bastante parecidos com os apresentados em um livro que os alunos do Vera Cruz já conheciam, De passinho em passinho, do autor Otávio Júnior.

O interesse das crianças nessa “coincidência” motivou a continuidade do intercâmbio cultural. Os alunos começaram a fazer trocas de e-mail com a professora Sheila (depois de chegarem juntos à conclusão de que uma carta demoraria muito para atravessar o oceano). A partir daí, foram apresentados os aspectos tecnológicos que envolvem o envio de um e-mail e a estrutura formal desse tipo de texto, que é direcionado a uma pessoa específica. Elas ditavam o que deveria ser escrito e a professora ajudava como escriba.

Ao longo do período de troca de e-mail, algumas questões permearam a conversa: Como será essa cidade? Será que tem escolas? Será que tem florestas? Será que tem carro? Que língua eles falam? As crianças levantaram hipóteses, aprenderam com Sheila e em pesquisas e por fim registraram em um desenho o que aprenderam sobre a Maputo atual.

Ao retornar para o Brasil, Sheila visitou a turma e trouxe consigo sete cartas enviadas pelas crianças moçambicanas. Depois de lê-las, as crianças se dividiram em sete grupos para respondê-las, o que encerrou esse momento de troca cultural e possibilitou que, novamente, eles empregassem suas habilidades de leitura e escrita em uma situação real da vida cotidiana.

Surgiu então a questão “No mundo, quem mais fala português?”. A partir daí, uma nova pesquisa foi realizada em mapas e textos informativos, na sala de aula e via lição de casa. As crianças também leram os contos de um livro que reúne contos de países africanos que falam português: A África recontada para crianças, de Avani Souza Silva.


Literatura: um trabalho aprofundado

No vídeo acima, as crianças brincam de Gogo Chiamela, uma brincadeira moçambicana na língua changana que a professora Patrícia ensinou à turma. Gogo Chiamela significa “olhar pela janela”. 

Nossa coletânea de brincadeiras e canções foi elaborada pela turma, com base nas suas descobertas. As crianças deram um livro de presente a Otávio Júnior, para compartilhar com ele que elas tinham escrito um livro também.

No início do segundo semestre, os alunos compartilharam seus livros favoritos, conversaram sobre eles e conversaram sobre suas percepções e sentimentos a respeito das diversas narrativas lidas coletivamente. Juntos, criaram a Biblioteca Circulante.

“Conversas sobre bons critérios para a seleção de livros ajudaram nossos pequenos leitores a fazerem suas escolhas, toda sexta-feira, e contarem para os colegas sobre leituras queridas, fazendo indicações orais ao resto da classe. Dessa forma, as crianças foram se apropriando dos procedimentos de uma comunidade leitora, como conversar sobre os livros lidos e ouvir recomendações dos outros”, dizem as professoras Luiza e Pati.

Depois de ler e ouvir tantas histórias, o 1º ano decidiu publicar seu próprio livro. Para compartilhar toda a riqueza da aprendizagem dos saberes ancestrais, geralmente de tradição oral, reuniram textos, melodias e gestos coletados em diferentes momentos de sua pesquisa. Nesse processo, desenvolveram habilidades como: seleção de textos, escrita e revisão, ilustração de histórias, escuta e negociação entre os pares. Assim surgiu a Nossa coletânea de brincadeiras e canções, que foi lançado na Fliverinha, festa literária com a presença das famílias (veja vídeo sobre a Fliverinha abaixo).

“Compartilhar e recomendar leituras, com propriedade, são focos importantes nesta etapa da escolaridade das crianças. Entendemos que falar sobre o que se lê e escutar os pontos de vista de outros leitores são fundamentais para a formação de leitores literários críticos”, explicam as professoras.


Referências negras

O escritor brasileiro Otávio Júnior, que havia sido apresentado aos alunos no primeiro semestre, voltou para que a turma se aprofundasse em sua obra e em sua biografia. Além de ler outros títulos do autor, também foi possível conversar pessoalmente com ele durante sua participação na Fliverinha.

Pedagogicamente, o intuito foi que o aprofundamento no estilo e biografia de um autor fomentasse e ampliasse o repertório de critérios das crianças para escolher, comentar e recomendar as leituras, o que de fato pode ser observado.

É importante também salientar a relevância de apresentar referências diversas para as crianças. Isso deve ser feito não só por meio de textos e imagens que apresentem pessoas diversas em gênero, raça e tipo físico, mas também ao mostrar que essas pessoas fazem parte do grupo de quem produz conhecimento – como professores, inventores, escritores, artistas etc.

Outra referência negra apresentada foi Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul cujos 27 anos de prisão pela luta pela igualdade chamou muita atenção de todos. O 1º ano leu o livro Meus contos africanos, coletânea organizada por Mandela, o livro Mandela, da Editora Mostarda e uma reportagem sobre sua trajetória.

Dos muitos questionamentos trazidos pelo grupo, considerando intencionalidades curriculares, as professoras escolheram dois para serem aprofundados em pesquisas: Existem pessoas brancas na África? Nelson Mandela lutou contra o apartheid sozinho?

“Para avançarmos na compreensão dessas questões, abordando aspectos da área de Ciências Humanas, como a relevância dessa personalidade para a história, contemplando o currículo da área, fomos em busca de fontes e vestígios que pudessem elucidar essas dúvidas: textos de jornal e imagens da época, entrevistas, e outros livros sobre a biografia de Nelson Mandela”, explicam as docentes. “Reconhecer que uma luta dessa magnitude só se sustentou e quebrou paradigmas por sua dimensão coletiva foi algo bastante marcante para o grupo.”

O projeto realizado com o 1º ano mostrou como é possível articular diferentes saberes e habilidades em um mesmo trabalho. Além disso, um dos principais aspectos observados foi o quanto as crianças aprenderam ao estabelecer não apenas relações de diferenciação entre o Brasil e outros países, mas principalmente relações de proximidade e semelhança.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.