Masculinidades negras: a intersecção de raça e gênero

Silvane Silva

Quando falamos sobre gênero, algumas pessoas entendem que estamos tratando apenas de temas relativos às mulheres ou às pessoas LGBT+. No entanto, é urgente compreender que os homens cis também possuem gênero e que as desigualdades se dão justamente pelas diferenças no tratamento existente na sociedade para homens e mulheres.

Sabemos que o gênero é uma construção social. As características do que é feminino ou masculino mudam de acordo com a época, lugar, cultura e religião. Então, podemos nos perguntar: quais são as imagens e ideias amplamente divulgadas sobre o que é ser homem na nossa sociedade? Quais são os papéis que são performados pelos homens e qual a performance é esperada deles?

A masculinidade é construída com base na experiência do mundo vivido, tanto na esfera pública como na intimidade. E essa experiência, para nossos jovens, é baseada no conceito de masculinidade tradicional ocidental branca e cristã,  que se tornou hegemônico na nossa sociedade. Nessa perspectiva, os homens devem ser provedores, proteger a família; precisam ser fortes, ter poder, não levar desaforo para casa e não demonstrar sentimentos, pois isso seria sinal de fraqueza. “Homem não chora” e “Seja homem” são frases ditas para meninos desde muito cedo. Essa forma de sociabilidade contribui para que os homens se transformem em algozes e ao mesmo tempo sejam vítimas da violência gerada pela cobrança desse papel a ser desempenhado.

Sendo assim, precisamos reforçar que o debate sobre gênero deve envolver também meninos e homens. É muito importante uma educação que empodere meninas e mulheres, porém é imprescindível considerar que a desigualdade e a violência se dão na relação entre homens e mulheres. Ambos devem refletir e participar dessa conversa para que as transformações de fato ocorram. Se está amplamente divulgado entre nós a frase de Simone de Beauvoir que diz “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, a mesma ênfase deveria ser dada para o fato de que tão pouco os homens nascem homens. São as relações sociais que ensinam o que é ser mulher e o que é ser homem.

Se a feminilidade é o conjunto de atributos, características e papéis sociais atribuídos às mulheres, a masculinidade é o conjunto de características e papéis sociais atribuídos aos homens. Portanto, obrigatoriamente precisamos considerar que homens e mulheres devem trabalhar juntos pela desconstrução de estereótipos e preconceitos e pela promoção da igualdade de gênero.

Nesse debate se faz necessário ainda considerar que padrões de comportamento que reforçam socialmente a masculinidade são diferentes para meninos e homens negros. Um dos dados mais gritantes e amplamente divulgados é referente à letalidade policial. Jovens negros são assassinados no Brasil em números inaceitáveis: segundo o IBGE, a taxa de homicídio entre homens negros é três vezes maior do que entre homens brancos. Porém existem outros dados que não são tão conhecidos e publicizados, exemplo disso são os dados dessa diferença no campo educacional.

A pesquisadora Fabiana Oliveira realizou uma pesquisa com estudos de campo em creches, na qual observou tratamentos diferenciados com crianças brancas e negras por parte de educadoras.  A pesquisadora relata que as travessuras sempre estavam associadas às crianças negras, que eram sempre as “vilãs” da história e em toda sala havia sempre um menino que era chamado de “furacão”, lido como agitado, alguém que sempre batia nos colegas, que nunca ficava quieto. Esse “furacão” era sempre negro. Oliveira observa que esses meninos faziam o mesmo que outras crianças brancas (derrubar comida no chão, empurrar cadeiras, brigar com outras crianças), porém, enquanto estas últimas eram orientadas de maneira branda e atenciosa, os meninos negros eram rotulados e castigados.

Esse olhar e tratamento para com os meninos negros desde a primeira infância é extremamente violento. No limite, essas atitudes lhes retiram o direito de serem crianças, responsabilizando-os pelas próprias ações mesmo quando essa responsabilidade é incompatível com a sua idade. Isso faz com que absurdos aconteçam, como foi o caso do menino Miguel, amplamente divulgado na mídia nacional, que com apenas 5 anos de idade foi deixado sozinho no elevador pela patroa de sua mãe, o que o levou a cair de uma altura de 35 metros. E ainda tentaram o responsabilizar pela própria morte por ser “uma criança traquina”.

A pensadora estadunidense bell hooks escreveu o livro A gente é da hora: homens negros e masculinidade, no qual nos convida a “romper com a masculinidade negra patriarcal sufocante e ameaçadora imposta aos homens negros e criar visões férteis para uma masculinidade negra reconstruída que pode dar aos homens negros formas para salvar suas vidas e as vidas de seus irmãos e irmãs de luta”. Você aceitaria o convite?

Referências citadas:

HOOKS, bell. A gente é da hora: homens negros e masculinidade. São Paulo: Elefante, 2022.

OLIVEIRA, Fabiana. Um estudo sobre a creche: o que as práticas educativas produzem e revelam sobre a questão racial. Dissertação de Mestrado em Educação. Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, 2004. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/2555. Acesso em: 13 fev. 2024.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.