Geometria e arte geram discussão sobre religiosidade e respeito

Por Nairim Bernardo

Quando a aluna Gabriela Frois fez a releitura de uma obra de Rubem Valentim (1922-1991), se deparou com um dilema: havia, no original, a presença de um símbolo do candomblé. Seria desrespeitoso retirá-lo da sua versão?

O questionamento da estudante veio em um dos momentos do itinerário “Matemática, Física e Arte: Reconectando Saberes”, da 2ª série do Ensino Médio, no qual os estudantes puderam conhecer, analisar e criar releituras das obras de Valentim, importante artista visual e professor brasileiro.

O ponto de partida do trabalho foi o estudo de propriedades geométricas por meio de construções com régua e compasso. Mas as professoras Janine Moura Campos e Natália Tonda também propuseram uma conexão da Matemática com a Arte. “Quisemos que os alunos olhassem onde essas construções geométricas aparecem no dia a dia, e um lugar em que aparecem muito é dentro das artes”, comenta a professora Natália. 

Foram analisadas obras dos artistas Luiz Sacciloto, Arcangelo Ianelli e Rubem Valentim, sendo esse último o escolhido para um estudo mais aprofundado.


Rubem Valentim e sua importância para a arte brasileira

O trabalho de Rubem Valentim é profundamente conectado com a religiosidade, um dos valores civilizatórios afro-brasileiros (link para matéria de capa). Nascido em 1922, em Salvador (BA), o artista negro iniciou seu trabalho artístico como autodidata na década de 1940. Em seus quadros, murais, relevos e esculturas em madeira, estão presentes referências a ferramentas de culto, símbolos de entidades e altares do candomblé e da umbanda. Ao olhar para suas obras, é possível notar com facilidade a rigorosa organização geométrica dos símbolos, o que nas palavras do artista compunha a “geometria do sagrado” e a “iconologia afro-ameríndia-nordestina”.

O trabalho com a obra de Valentim envolveu a apreciação e a elaboração de uma releitura de uma de suas obras pelos alunos. Todos foram convidados a escolher uma obra, realizar uma análise geométrica dela e, utilizando os elementos e propriedades estudados, criar uma releitura no programa GeoGebra, que já tinha sido utilizado por eles anteriormente.

“A proposta era que essa releitura fosse feita a partir da geometria. Colocamos a questão: como é possível pegar uma obra, analisá-la, descobrir os problemas matemáticos presentes nela e reproduzir isso sem que seu trabalho resulte em uma cópia, mas trazendo para sua vivência e linguagem?”, diz a professora Janine.

Todas as releituras foram entregues junto com um relatório com o passo a passo da análise geométrica e os critérios para a escolha da obra.  Nos relatórios e nas conversas com os alunos sobre o trabalho, ficou evidente a preocupação que eles tiveram em respeitar o artista, as obras e os símbolos do candomblé e da umbanda (veja, abaixo, algumas das produções de estudantes e os comentários feitos).

As releituras realizadas pelos alunos foram organizadas em uma exposição que pôde ser visitada pelas famílias de toda a 2ª série ao longo de agosto.


Reflexões sobre a releitura

Beatriz Puntoni: “Eu escolhi essa obra para fazer minha releitura, pois consegui imediatamente perceber diversas relações matemáticas e geométricas que chamaram muito minha atenção. Principalmente por ela estar dividida em 15 quadrados idênticos com diferentes desenhos e símbolos em seus interiores. Além disso, gostei bastante dessa obra por conta de suas cores que se complementam muito bem, e por serem mais diferentes das outras obras que tínhamos visto de Valentim. Em minha releitura, me inspirei em algumas formas utilizadas pelo artista, mas substitui os símbolos por algumas formas geométricas que me remetessem a mandalas e azulejos, com cores e formatos variados.”

Beatriz Puntoni

Luiza Mudrik: “A obra Emblema, 1987, traz ‘símbolos que representam uma coletividade’ de maneira extremamente geométrica. Para a releitura, pensei nas relações matemáticas por ele criadas – desde a perfeita separação da obra em duas partes de igual área, à simetria presente nos polígonos e setores circulares por ele pensados. Mantive as cores da obra original, por criarem grande contraste. E usei dois símbolos da dita era moderna – cifrão e cruz, representando o capitalismo e o cristianismo, respectivamente – no lugar dos emblemas de Rubem Valentim, porque, querendo ou não, é exatamente esse o movimento que estamos vivendo. Intitulei-a Modernidade.”

Luiza Mudrik

Maria Carolina Assumpção: “A releitura foi baseada na obra Emblema, de Rubem Valentim. O baiano, ao produzir essa obra, usou a composição de diversas formas geométricas como o triângulo isósceles, circunferências e retângulos. O objetivo das suas obras era ser algo além de visualmente belo, também algo que refletisse um profundo significado de suas raízes, origens, vida e religião. Para a releitura tentei trazer um novo significado à criação original, implantando signos do horóscopo que representam meu signo (leão), Lua (touro) e ascendente (virgem), para que assim, nada do que tenha sido pensado por Rubem Valentim tenha seu significado modificado de forma desrespeitosa, apenas uma nova história, de outro ‘artista’ sendo atribuída a ela.”

Maria Carolina Assumpção

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.