Modernidade e colonialidade: descolonizando o currículo

Por Nairim Bernardo

“Toda a vida na escola é currículo em última instância”, resume André Reinach, assessor curricular da Escola Vera Cruz. Mas a parte mais palpável do currículo é a escolha sobre o que e como ensinar. Para construir um projeto antirracista, portanto, é fundamental pensar não apenas nas relações interpessoais, mas também em como cada um dos conteúdos são abordados em sala de aula.

Era essa tarefa de reformulação que o professor Mario Zanca Neto estava realizando para a área de Ciências Humanas quando a Escola Vera Cruz começou a desenvolver o seu projeto de educação antirracista. Logo ele percebeu que o novo currículo precisava de mais mudanças e não hesitou em começar o trabalho novamente.

“Eu já tinha reformulado o currículo, mas ainda não estava satisfeito. Fui estudar, fiz um curso sobre educação antirracista e a questão da decolonialidade no currículo. Pensei muito na minha responsabilidade como professor branco e que, para uma educação antirracista, é necessário um currículo antirracista”, relembra ele.

“Defini a decolonialidade como fio condutor. Quando pensamos nesse conceito, podemos entender a colonialidade do ser, do saber e do poder. A partir disso, pensei em como começar a descolonizar o currículo e as sequências didáticas”, afirma Mario. O pensamento decolonial é aquele que questiona a percepção de mundo que sempre parte de referenciais da Europa Ocidental e propõe uma revisão a partir da perspectiva de povos que foram oprimidos. Para entender como isso pode acontecer na prática, basta pensar na diferença entre dizer que o Brasil foi descoberto em 1500 e que o Brasil foi invadido. Qual versão foi contada quando você estava na escola?

No trabalho com o 8º ano, que é focado na história do Brasil, o professor Mario definiu algumas perguntas norteadoras, sendo elas:

  • Por que se pode dizer que a colonização acabou e o colonialismo não?
  • América: descobrimento, conquista ou invasão?
  • Modernidade e colonialidade: como deslocar o olhar eurocêntrico sobre a modernidade e construir outros imaginários? Imaginários que nos coloquem como sujeitos da história e não sujeitos à história?

Refletindo sobre elas é possível ver como a perspectiva da educação antirracista promove uma nova forma de pensar mesmo os temas que já são tradicionalmente tratados pela escola.


Desfazendo os mitos eurocêntricos 

No começo do ano, os alunos fizeram uma revisão histórica do período escravocrata a partir da luta e da resistência negra. O primeiro ponto importante é reconhecer que essa resistência à escravidão sempre aconteceu, diferente de muitas narrativas de novelas ou quadros clássicos que representam as pessoas escravizadas como passivas. O maior exemplo disso é o Quilombo dos Palmares, que já figura no imaginário social como um dos maiores símbolos de liberdade e de resistência a qualquer forma de discriminação.

Em uma atividade, quando perguntado sobre a mudança na visão histórica da escravidão, um aluno respondeu: “Com a historiografia contemporânea, desfazemos mitos que nos foram contados”. Em outra tarefa, a turma foi orientada a olhar para a cidade e para as notícias do jornal à luz da pergunta central do trimestre e elaborar reflexões sobre o colonialismo no cotidiano.

No segundo trimestre, os alunos estudaram os povos da América antes da chegada dos europeus e como foram os primeiros contatos com os recém-chegados. Nesse momento, leram a Carta de Pero Vaz de Caminha e textos de Ailton Krenak, primeiro indígena eleito para a Academia Brasileira de Letras. Passaram então a prestar mais atenção no uso das palavras e como seus significados alteram não só o sentido de uma frase, mas também a perspectiva que construímos sobre os fatos históricos e o olhar sobre diferentes povos.

Por fim, estudaram o Renascimento e a modernidade europeia. A partir de obras de arte e releituras, começaram a deslocar o olhar eurocêntrico para observar como artistas negros e indígenas propõem outros imaginários. Ao entrar em contato com novos artistas, puderam entender os denominados clássicos, como a Monalisa, como parte da história da arte e não como o modo único e “superior” de fazê-la. Entre os artistas apresentados para os alunos estão: Jaider Esbell, Denilson Baniwa e Harmonia Rosales e Arjan Martins.


Daqui para a frente

O professor Mario está há 3 anos investindo no processo de mudanças curriculares focadas em um currículo antirracista e conta que já observa transformações importantes no comportamento dos alunos. Segundo ele, como o 6º e o 7º ano também já estão discutindo algumas dessas questões, a resistência dos alunos diminuiu. Eles estão mais abertos para pensar a história de uma outra perspectiva e para desfazer os mitos da historiografia tradicional eurocentrada, inclusive trazendo questionamentos próprios.

Já no que diz respeito aos professores, ele conta que no início das pesquisas sobre educação antirracista todos chegaram ao entendimento de que isso não poderia ser um “puxadinho”, ou seja, que fossem tratadas em aulas separadas do restante do currículo. “Fiquei com isso na cabeça e quando fui repensar o currículo defini que esse olhar tinha que fazer parte de todo o processo curricular. Por isso pensei em algo que viesse desde o primeiro semestre e perdurasse”, conta Mario.

“Temos reuniões semanais entre os professores dos Anos Finais do Ensino Fundamental. Estamos sempre dialogando e compartilhando as experiências para que o currículo seja uma constante, uma trajetória. Eu mergulhei nessa reformulação mais profunda, e estou num diálogo com professores de outros anos para continuarmos essas mudanças. Também temos reunião uma vez por mês com os professores do Ensino Médio, até pra saber como esse processo tá continuando lá”, diz. “A minha projeção de futuro é conseguir pensar e repensar as atividades no sentido de desconstruir esse imaginário colonialista e reconstruir um que considere a nossa história por outras perspectivas, e isso não se faz com uma ação, com uma sequência didática ou em um ano só.”

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.