G5 ao 2º ano

Gilberto Gil e Afoxé Filhos de Gandhy inspiram semestre de aprendizados para alunos do 1º ano

Reportagem: Mariana Gonzalez

Cultura, história, literatura, cinema e matemática. Muito além da música, que o tornou conhecido no Brasil e no mundo, Gilberto Gil foi o fio condutor para aprendizagens vividas em diversas áreas pelas crianças do 1º ano dos professores Beatriz Freire e Rafael Silva.

A ideia nasceu durante um projeto em que as crianças pesquisaram elementos da cultura afro-brasileira presentes em diferentes manifestações do carnaval brasileiro, que começou com a leitura dos livros Os Ibejis e o carnaval, de Helena Theodoro, e Fevereiro, de Carol Fernandes, entre outros. Neste último, os alunos conheceram a história do bloco Afoxé Filhos de Gandhy, contada a partir da visão de um personagem cuja família participa das tradições do bloco. “Ao final do livro, há uma dedicatória da autora a Gilberto Gil, que, na década de 1970, ajudou a preservar a tradição do bloco com a canção ‘Filhos de Gandhi’, que o grupo já conhecia do repertório das aulas de Música. Assim, nasceu um grande interesse da turma pela figura dele”, lembra a professora Beatriz.

Esse interesse surgiu justamente no momento em que o cantor está se apresentando pelo Brasil em sua turnê de despedida, “Tempo rei”, aos 83 anos. “Ele é um artista com grande relevância nacional e internacional, que ajudou a construir uma identidade brasileira e afro-brasileira na nossa música, e que segue na ativa, se apresentando. Gil tem uma trajetória importante também na política desde a Ditadura Militar e na defesa da cultura. É importante que seja reconhecido em vida”, defende Beatriz.

Os professores Beatriz e Rafael passaram, então, a apresentar e discutir com os alunos a vida e a obra de Gilberto Gil. Juntos, ouviram músicas, estudaram letras e assistiram a documentários sobre a biografia do artista – um deles, Gilberto Gil: biografia, disponível no YouTube, foi dividido em dez capítulos e exibidos à turma semanalmente, em um evento que apelidaram de “Cine Gil”; a última sessão foi celebrada com pipoca. “Foi uma empolgação. A cada semana, a gente avançava um pouco, relembrava o que tinha visto antes e discutia o que assistimos. Aos poucos, as crianças foram fazendo associações entre as letras das músicas que elas conheciam e trechos da trajetória de Gil”, conta a professora.

A turma assistiu, em partes, a um documentário sobre Gil. Com base no filme, passaram a relacionar a vida do músico com sua obra.

Em determinado momento do documentário, é mencionada a censura e o exílio de Gil durante o período da Ditadura Militar.  “A imagem do Gil foi ganhando uma dimensão heroica na cabeça das crianças. Na percepção delas, ele é esse homem corajoso, que salvou os Filhos de Gandhy e lutou contra a ditadura cantando músicas sobre liberdade, e que, ao mesmo tempo, é uma figura encantadora, generosa, criativa e inspiradora, que contribui na construção de uma imagem sobre a masculinidade negra no campo da afetividade”.

Tanto Beatriz quanto a orientadora Márcia Moraes contam que a figura de Gilberto Gil como herói foi importante para a autoestima dos alunos negros da turma. Um deles reconheceu uma guia de Xangô durante uma cena do documentário e abriu uma conversa sobre a cultura dos orixás, que é celebrada pelos Filhos de Gandhy. Outro animou-se ao notar que Gil usou o penteado black power durante alguns anos, e, ao ver uma foto do artista criança, comentou que se parecia com ele. A pesquisa foi importante para ampliar o repertório das crianças brancas, ajudando-as a reconhecer, desde cedo, a presença de pessoas negras em lugares de destaque, liderança e criação.

Ao longo dos estudos, os alunos se sentiram tão próximos de Gilberto Gil que decidiram comemorar o aniversário do cantor, no último dia 26 de junho, com bolo, parabéns e karaokê de músicas dele. Com a ajuda dos professores Beatriz e Rafael, escreveram uma carta para ele, contando que passaram meses estudando sua obra e tecendo toda a sorte de perguntas e comentários espontâneos – algumas crianças pediram para Gil não se aposentar e continuar cantando, outras perguntaram por que ele decidiu ser cantor ou qual o sabor de bolo preferido dele. Inspirado pelos livros Fevereiro e Andar com fé, no qual a letra de Gil recebe ilustrações do artista Daniel Kondo, o grupo decidiu incluir essa carta em um livro que celebra a canção “Filhos de Gandhi”, ponto de partida de todo esse percurso. As crianças estudaram técnicas de recorte e colagem para criar ilustrações para a letra da música, o que também abriu a oportunidade para aprendizagens sobre matemática e geometria. Além disso, o estudo mais aprofundado da letra da música as levou a conhecer, através da literatura, as narrativas por trás de cada orixá convocado por Gil em “Filhos de Gandhi”.

“O trabalho trouxe muitas oportunidades de aprendizado para as crianças, especialmente sobre escrita e leitura, desde o estudo sobre as letras e todos os livros que lemos juntos, em sala de aula, até a escrita da carta coletiva e os registros individuais produzidos pelas crianças como forma de significar e compartilhar as novas aprendizagens”, celebra a professora Beatriz. “É um percurso bonito porque celebra tudo o que o Gil produziu para a cultura brasileira”, completa a orientadora Márcia.

O estudo levou à criação de murais, em que as crianças colocaram suas produções artísticas e narrativas sobre cada orixá mencionado na música. “Além de marcar um momento de sistematização e conclusão do trabalho das crianças, esses murais tiveram o papel fundamental de apresentar às famílias, de forma positiva e envolvente, o conteúdo e as reflexões do projeto. Essa etapa funciona como ato de valorização pública do projeto, fortalecendo vínculos entre escola, famílias e comunidade, e garantindo que a mensagem artística, política e antirracista alcance também os lares das famílias”, diz o professor Rafael.


O que é tradição?

Esse questionamento surgiu entre as crianças do grupo ao estudarem a história e a cultura do bloco Afoxé Filhos de Gandhy. Os relatos de Gil sobre suas vivências com o bloco apontaram um caminho para que as crianças desvendassem o significado dessa palavra: tradição tinha algo a ver com aprender com os mais velhos. A partir disso, o grupo realizou uma pesquisa com pessoas mais velhas na escola, e, juntos, construíram um sentido coletivo para o que a palavra tradição pode representar. “Tivemos receio de trabalhar as tradições caindo no que é tradicional, no sentido de ser imutável”, lembra Beatriz.

Felizmente, eles encontraram um caminho no livro Do auto do nosso boi, de Bel Carvalho, lido durante o ciclo junino. Nele, a autora apresenta a cultura do bumba meu boi lembrando que, há alguns anos, as mulheres não podiam interpretar nem tocar, apenas assistir às apresentações, e conta como elas lutaram para poder participar dessa manifestação cultural. “As crianças ficaram indignadas. Aproveitando esse contexto, contamos que, no Filhos de Gandhy, as mulheres não podem desfilar até hoje. Nesse momento, uma criança questionou se todas as tradições eram injustas”, conta. “Explicamos, então, que algumas tradições foram criadas há muito tempo, em épocas em que ainda existiam muitas injustiças, e que algumas tradições acompanharam as transformações da sociedade, como o bumba meu boi, e outras ainda não. Dessa forma, não perdemos de vista o valor dessas tradições na manutenção da memória e da cultura do nosso povo, sem deixar de questioná-las.”

Os professores contaram às crianças que existe também o Afoxé Filhas de Gandhy, um movimento de mulheres que reivindica espaço no bloco. “Assim, eles mesmos conseguiram questionar a tradição sem invalidar o que já tinham aprendido a gostar daquela cultura”, finaliza.

Para saber mais

Documentário | Tempo rei, de Andrucha Waddington.

Documentário | Gil: biografia, desponível no YouTube.

Livro | Os Ibejis e o carnaval, de Helena Theodoro.

Livro | Fevereiro, de Carol Fernandes.

Livro | Do Auto do Nosso Boi, de Bel Carvalho.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.