Por Gabriela Del Carmen
Na educação antirracista, muito se pode fazer trabalhando com a literatura. As obras têm um evidente valor em si, mas é possível conceber outras rotas pedagógicas – talvez mais desafiantes, mas que dialogam com a necessidade de trabalhar o letramento racial em todas as áreas de conhecimento. O caminho escolhido pelas professoras Renata Vasques e Bárbara Pádua, do 4o ano, abraçou ambiciosamente essa proposta: a literatura abrindo as portas para a Geometria, a Geografia, a Arte – e a compreensão interdisciplinar da diversidade que é a África.
A leitura de “Histórias da Preta”, livro de Heloisa Pires Lima, levou os estudantes a navegarem pela vida da etnia Ndebele. A obra infantojuvenil retrata a África como um continente que acolhe diferentes povos e culturas, abrindo caminho para discutir temas como etnia, racismo e a população negra no Brasil.
“O livro atende o que buscávamos para o 4º ano: uma leitura com riqueza de detalhes, histórias e referências. Ao romper com estereótipos da população negra e do continente africano, traz uma outra realidade para que as crianças possam se perceber e começar a se transformar”, explica Bárbara.
As ilustrações cativaram a turma. É difícil não se encantar com as fachadas que dão forma às casas do povo Ndebele, situado na África do Sul. Com seus traços geométricos padronizados e cores vibrantes, as figuras estampam as paredes exteriores como se fossem grandes telas de pintura. Uma herança artística passada de mãe para filha.
“Uma coisa que me deixou impressionada é que, no passado, as mulheres usavam terra e esterco para pintar. Mas hoje usam tinta acrílica”, conta Aurora, estudante do 4º ano que participou da atividade. Seu colega Felipe destaca um outro ponto que lhe chamou a atenção: “É tradicional as mulheres pintarem cores e formas vibrantes. Mesmo sendo uma sociedade patriarcal, elas têm a função de pintar as casas”, explica.
Ao pesquisar sobre a etnia, a classe descobriu os trabalhos de Esther Mahlangu, artista sul-africana da nação Ndebele que ficou conhecida mundialmente por obras que fazem referência à tradição artística de seu povo. Os estudos sobre a padronagem das fachadas, aliás, casam muito bem com as aulas de matemática. “O que são ângulos? Polígonos? Quais formas geométricas podemos encontrar nas casas Ndebele?”, questionavam as professoras.
“Rendeu muito conhecimento a partir de um estudo que surgiu com a literatura. Foi um trabalho que fez muito sentido para as crianças”, analisa Renata. Para que os alunos pudessem experimentar e criar esses traços na prática, as educadoras uniram forças com o professor de Artes, Serejo, para a montagem de uma maquete que representasse a padronagem Ndebele.
“Achei difícil escolher as formas. Fiz o zigue-zague, um quadrado com um X no meio e um triângulo dentro do outro”, conta Aurora. “Comecei com a régua, depois quis experimentar como era sem a régua. Escolhi as figuras que achei mais legais”, diz Ana. “Eu nunca tinha feito um projeto assim”, observou Davi. As crianças fizeram as padronagens em caixas e no final do ano convidaram suas famílias para ver o resultado do trabalho.
Não parou aí. Inspirados pela leitura de “Histórias da Preta”, os alunos tiveram a oportunidade única de conversar com Heloisa Pires Lima em um bate-papo virtual. “Foi muito interessante ver quais perguntas eles faziam. Queriam saber a relação da autora com o racismo, se ela já havia sofrido com isso. A Heloisa explicou que era algo vivenciado todos os dias, algo sobre o que as crianças vêm refletindo desde o 3o ano”, conta a professora Bárbara. Além disso, os alunos estavam curiosos para saber como tinha sido a infância da autora e se ela havia vivido ou inventado as histórias narradas.
Antes mesmo de abordar a etnia Ndebele, as classes mergulharam no estudo sobre os diferentes países e culturas que formam o continente africano. “Abrimos o mapa e localizamos a África e seus países. Mostramos a grandiosidade e explicamos que cada região tem a sua especificidade, língua e etnia. O livro da Heloisa traz justamente isso: entender a África como um continente plural”, explica Renata. “Eles não imaginavam que havia tantas diferenças culturais e étnicas no continente. Depois da leitura, perceberam que era uma região com mais de uma etnia, mais de uma referência, e ficaram bastante tocados”, acrescenta Bárbara.
O livro disparou conversas profundas sobre o período da escravização e o racismo na sociedade brasileira. Crianças que têm pais negros tiveram uma participação valiosa nas discussões ao compartilharem suas vivências, provocando muitas reflexões no grupo ao contar os preconceitos que seus familiares já sofreram.
Ao final do semestre, os alunos criaram um mural com os autores negros e obras literárias que conheceram ao longo do ano, incluindo livros de Kiusam de Oliveira, Emicida, Ondjaki, entre outros. Um fechamento de ciclo que a própria Renata define como “muito simbólico” – com impacto sobre a própria construção de um currículo atento às relações étnico raciais, em que a leitura de textos literários pode abrir possibilidades de se estabelecer conexões com outras áreas do saber.