Em ‘Torto Arado’, alunos descobrem o Brasil profundo da escravidão

Por Beatriz Calais, Gabriela Del Carmen e Maria Laura Saraiva 

O chão das nossas casas e dos caminhos da fazenda era de terra. De barro, apenas, que também servia para fazer a comida de nossas bonecas de sabugo, e de onde brotava quase tudo que comíamos. Onde terrávamos os restos do parto e o umbigo dos nascidos.

Itamar Vieira Junior, “Torto Arado”

Na obra “Torto Arado”, a terra é tão presente que chega a figurar como um dos personagens da trama. Como descrito no trecho acima, ela é parte das casas, das estradas, das comidas e até das memórias felizes ou traumáticas vividas por aqueles que a usufruem. Usufruir, na realidade, é uma palavra contraditória quando se trata do enredo escrito pelo autor Itamar Vieira Junior. Ao longo das páginas, percebe-se que as personagens principais, as irmãs  Bibiana e Belonísia, fazem parte de uma comunidade de trabalhadores que vivem em condições análogas à escravidão. Elas não ganham salário e a única coisa que recebem em troca pelo trabalho é o “direito” de morar naquelas terras e ter um pedacinho de chão. 

Para erguer a própria moradia, no entanto, o único material disponível é o barro — os fazendeiros jamais aprovariam a construção de casas sólidas. Com lares temporários feitos de um material que pode desabar em um dia de chuva torrencial, os trabalhadores carecem de um simples patrimônio que possa guiar sua luta por direitos. A terra é sua companheira constante, mas a quem ela pertence? Quais riquezas ela representa? 

Esses são alguns dos questionamentos que surgem ao estudarmos a histórica concentração de terra no Brasil e seu impacto profundo sobre a vida das pessoas — temática que é trabalhada pelo currículo do 2ª ano do Ensino Médio do Vera Cruz, durante o segundo trimestre do ano letivo. Tendo a terra como foco central, diversas questões relacionadas à história, geografia e ciências da natureza podem ser abordadas. Foi pensando nesse contexto que a professora de história Flávia Ricca Humberg teve a ideia de indicar a leitura de “Torto Arado” para os alunos do 2ª ano. 

“Eu fiz essa leitura na pandemia de covid-19 e me sensibilizei muito com a história. Pelo seu valor literário e histórico, acabei levando o enredo para a sala de aula”, conta ela, que se surpreendeu com a aceitação da classe. “A primeira vez que eu fiz essa atividade foi em 2021, quando ainda estávamos trabalhando à distância. Os alunos mergulharam na temática, então decidi trabalhar com a obra novamente em 2022. Foi um sucesso.” 

Para a professora, o livro representa um choque de realidade importantíssimo para se entender e conhecer o Brasil de verdade. “Ele fala de um Brasil que é invisível para muitas pessoas, principalmente para quem está aqui em São Paulo. Uma estrutura profunda que impactou a formação desse país e continua impactando até os dias atuais”, explica. 

Embora “Torto Arado” não deixe claro em qual época sua história se passa, infelizmente essa não é uma realidade que ficou no passado.


Muitos Brasis 

Há uma linha tênue que separa a realidade e a ficção na obra de Itamar Vieira Junior, um romance com personagens ficcionais, mas inspirado num realismo cru. Geógrafo por formação, Itamar viajou pelo sertão do Brasil para conhecer de perto a história dos trabalhadores rurais. Além disso, passou anos estudando sobre o assunto antes de realmente lançar o livro para o mercado. Tal esforço resultou em uma obra laureada com o Prêmio Jabuti em 2020. 

Segundo dados do Ministério do Trabalho e Previdência, somente em 2021, o Brasil registrou 1.937 pessoas em situação de escravidão contemporânea, um dos maiores números já levantados nacionalmente, perdendo apenas para o marco de 2.808 trabalhadores em 2013. Desde 1995, quando o Brasil reconheceu, diante das Nações Unidas, a persistência do trabalho escravo em seu território, mais de 57 mil pessoas já foram resgatadas.

Eis um trágico resquício do país que Itamar retrata em seu romance. Mais do que um estudo sobre a terra, a leitura de “Torto Arado” escancara a existência de uma realidade muitas vezes invisibilizada. Um Brasil profundo que está mais próximo da superfície do que se imagina. 


Um eco no ensino 

Após indicar a leitura e promover rodas de conversa sobre a história, Flávia propôs que os alunos realizassem uma espécie de transposição do enredo para outra linguagem. A ideia era se inspirar na obra para criar artes como poemas, vídeos, músicas, colagens ou até mesmo bordados. “Eles foram sensíveis e se aprofundaram nesse projeto. Fizeram atividades lindas que me emocionaram. A leitura teve um eco muito incrível no ensino.” 

Na visão da professora, as questões expostas no livro e discutidas em sala de aula abriram espaço para que a classe pensasse sobre os tempos atuais enquanto compreendia o passado de seu país. “Foi uma leitura fluida, mas que estimulou e demandou tempo para capturar tamanha densidade: refletir sobre a denúncia de uma sociedade que ainda é profundamente marcada pelo seu passado em que a escravidão era tolerada”, relata. 

Do ponto de vista de alguns alunos, o debate em grupo permitiu que a leitura que havia sido feita em casa, durante um mês, ganhasse novas camadas e significados. “Nesses momentos, descobrimos outras perspectivas de leitura, que talvez não tivéssemos sozinhos”, afirma a aluna Clara Echeverria. “É um livro muito denso, com muitas histórias e valores culturais. Então, a mediação da professora foi necessária para complexificar aquelas questões que estavam sendo apresentadas”, completa.

Luca Gianesi conta que ficou impactado logo nas primeiras páginas. “A obra retrata o Brasil do jeito que precisa ser retratado. No início, já fiquei muito impactado com o que aconteceu com uma das protagonistas. É algo que com certeza vou levar comigo para o resto da vida”, diz. O sentimento, segundo o estudante, era compartilhado entre outros alunos, que também se sensibilizaram com a narrativa.

“Conversamos muito na sala de aula. A professora colocou bastante energia e fé no projeto. Da parte dos alunos, percebi que muitos se sentiram tocados e tiveram a mesma percepção que eu”, afirma. Ele destaca que as discussões em classe contribuíram para novas reflexões — não apenas sobre a história em si, mas os elementos e conteúdos que a permeiam. “Falamos muito sobre o direito à terra, propriedade e moradia, além de medos, crenças e religiosidade”, recorda.

As discussões em sala abordaram ainda temas como herança escravista; racismo e resistência; tradições culturais; conflitos e disputas pela posse de terra; e lutas de raça e gênero. Assuntos que ultrapassam os limites da ficção, alcançando também as questões sociais presentes na sociedade.

“‘Torto Arado’ é uma ficção baseada na realidade. Nunca li um livro tão chocante e real quanto este. As três partes da obra, divididas em três narradoras, trazem um pouco da perspectiva pessoal do passado escravocrata e do racismo no Brasil, por isso foi um livro tão significante para este ano escolar, junto com as aprendizagens do passado e a atualidade do nosso país”, analisa a aluna Alice Gandour.


Transformando sentimento em arte 

Após as conversas e reflexões provocadas pela leitura, os alunos foram convidados a expressar em linguagem artística os temas discutidos nas aulas. Foi hora de transformar o conhecimento aprendido em criatividade, com a produção de colagens, desenhos, pinturas, bordados, poemas, animações em vídeo e até composições musicais.

Luca optou pelo grafite, um talento que vem aperfeiçoando nos últimos tempos. A inspiração para sua obra foi a protagonista que corta a língua e não consegue se comunicar por meio da linguagem verbal. Nas paredes da escola, ele desenhou a personagem com um “não” escrito em vermelho em cima de sua boca.

Trabalho artístico inspirado na leitura de “Torto Arado”.

“Representa não só que ela não consegue falar, mas também várias coisas que a gente vem passando como sociedade hoje em dia”, explica. Uma passagem simbólica para refletir sobre o silenciamento de grupos minoritários, vulneráveis e sub-representados na sociedade brasileira. “Ela não conseguir falar já diz muito sobre a história que o autor quis passar. É até maior do que se ela falasse”, analisa Luca.

Ao fim, o contato com “Torto Arado” teve impacto positivo sobre a turma. Uma obra que, como os alunos confirmam, talvez não fosse uma escolha óbvia de leitura fora do ambiente escolar, mas que, uma vez inserida no planejamento das aulas, fez os alunos mergulharem numa realidade distante para eles.

“A leitura foi muito rica no sentido de nos conectar com personagens que possuem vivências tão diferentes de nós, alunos do Vera Cruz. Essa conexão me fez sentir a dor desse preconceito, ao mesmo tempo que mostra a esperança daquelas famílias”, afirma Clara.

Na opinião da estudante, é papel da escola expor os alunos a esse tipo de conteúdo em uma tentativa de ampliar os pontos de vista sobre questões tão relevantes. “A escola tem um papel importante na nossa formação como seres humanos, junto com a nossa casa e nossa família. Por isso, esses momentos são fundamentais para estimular nosso pensamento crítico em relação à ocupação dos espaços sociais que estamos”, finaliza.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.