O poder ancestral e os valores civilizatórios afro-brasileiros

Por Gabriely Araujo

O Brasil se organiza em roda, no samba, na capoeira, no carimbó, maracatu e na sala de aula. A roda é tão fundamental que, segundo o jornalista e crítico musical Roberto M. Moura, é ela que dá origem ao samba: “Se a roda não estivesse lá antes, não haveria samba”, afirma ele em frase em destaque na exposição “Pequenas Áfricas: o Rio que o samba inventou”, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo.

Não é uma casualidade. A roda, ou melhor, a circularidade é um dos valores de origem afro-brasileira que dão identidade e caracterizam princípios e aspectos existenciais, espirituais, intelectuais e materiais do país. Chamados de valores civilizatórios afro-brasileiros, esses princípios surgiram com as populações negras em diáspora,  imigração forçada de pessoas do continente africano para outras regiões do mundo, como o Brasil. Além da circularidade, os valores também contemplam musicalidade, oralidade, memória, ancestralidade, cooperativismo, energia vital, corporeidade e ludicidade. “Os valores civilizatórios somos nós. Nós somos esse povo que valoriza nossa capacidade de fazer música, de dançar, que vê de uma forma positiva o trabalho feito de forma coletiva”, explica Edneia Gonçalves, coordenadora executiva da ONG Ação Educativa.

Eles foram formulados pela educadora e pesquisadora Azoilda Loretto da Trindade, que dedicou sua trajetória a teorias e práticas que contribuíssem para a educação antirracista. “Como afro-brasileiras e afro-brasileiros, ciosas/os e orgulhosas/os desta condição, em diálogo com valores humanos de várias etnias e grupos sociais, imprimimos valores civilizatórios de matriz africana à nossa brasilidade que é plural”, pontuou Azoilda, em um caderno de atividades para Educação Infantil, publicado em 2016.

A ideia de coletividade é fortemente presente nos valores afro-brasileiros. Ela se opõe a ideias como o individualismo, o sucesso pessoal e a meritocracia, mais populares em algumas culturas ocidentais. “Os valores mostram como as populações negras buscaram sempre beneficiar a coletividade ou toda a sociedade e não apenas um segmento, e isso demonstra uma visão de promoção de bem comum e de construção social mais igualitária, transformadora e inclusiva”, afirma Helton Souto, presidente do Instituto DACOR.

Os valores civilizatórios surgem da influência negra, boa parte deles pode ser encontrada em diversas culturas do continente africano, e foram trazidos para o Brasil, em sua maior parte, pelos indivíduos da diáspora africana. Aqui, as tradições de cada um desses povos entraram em diálogo entre si e também com aquelas de outros povos, sobretudo os indígenas. Assim, formou-se esse conjunto de valores, profundamente presentes na vida da população negra, mas também na identidade do país como um todo. Inclusive, refletir sobre a presença dos valores na sociedade como um todo requer, por si só, uma reflexão sobre a ancestralidade: muitas vezes, a popularização desses valores passou por apagar a origem africana e afro-brasileira deles. É o caso, por exemplo, do samba, que, durante o século 20, ganhou o status de símbolo nacional mas nem sempre teve a sua origem afro-brasileira devidamente reconhecida.

Na Escola Vera Cruz, os valores civilizatórios perpassam todo o projeto político e pedagógico, assim como as práticas do dia a dia. “Eles são uma inspiração fundamental para construir um cotidiano que é mais poroso, mais capaz de dar lugar para todos os corpos”, afirma André Reinach, assessor de currículo da Escola Vera Cruz. A importância deles está, por exemplo, em reconhecê-los ao analisar a produção cultural da população negra. Na 2ª série do Ensino Médio, por exemplo, os estudantes refletiram sobre a centralidade da religiosidade na obra do artista Rubem Valentim.

Outro aspecto importante vivido por estudantes e famílias é a incorporação intencional de alguns desses valores nas práticas do colégio. A ancestralidade, por exemplo, se apresenta de forma transversal, em todo o currículo: na revisão feita em Língua Portuguesa recentemente, a influência africana ganhou um papel importante para como a língua será abordada ao longo dos anos finais do Ensino Fundamental.

Os valores também estão presentes na maneira como a escola resolve conflitos, promove diálogo e constrói, dia a dia, o seu projeto político pedagógico. “Os valores civilizatórios afro-brasileiros preconizam uma abordagem pedagógica que valoriza a alteridade, a diversidade, a escuta, uma pedagogia que ultrapassa o espaço da sala de aula, que vai além do currículo escolar. Diz respeito a um novo estar no mundo, uma nova sociabilidade. É preciso entender os valores civilizatórios como um enredo, uma trama, que deve, necessariamente, envolver a todas/os, senão não se efetiva”, conta Ana Paula Brandão, diretora programática na ActionAid Brasil e uma das responsáveis pelo projeto A Cor da Cultura, iniciativa educativa de valorização da cultura afro-brasileira.

Ana pontua o quanto o passado e a história do povo negro é importante para a formação do jovem, e reforça que ainda predomina, na maior parte das escolas brasileiras, uma mentalidade que ignora os saberes, os modos de ver, as tradições e ancestralidade dos negros e negras e povos indígenas. “Não conhecer e não conviver, como nos diz Cida Bento, nos empobrece em termos cognitivos, comprometendo nossa capacidade de aprender como o outro.”

Conheça, abaixo, cada um dos valores civilizatórios afro-brasileiros:

Oralidade

As contações de história aos pés dos baobás, uma tradição bastante reconhecida, é um exemplo da presença da oralidade na África e que se construiu também no Brasil. Há muitos elementos na transmissão oral que não estão presentes em outras formas, como a relação próxima entre o contador de histórias e aquele que ouve – e também participa – e, por isso, ela é trabalhada em todas as etapas escolares.

Musicalidade

Muitos críticos culturais reconhecem a tradição musical popular como a maior riqueza cultural do país, fonte de inspiração para músicos de todas as partes do mundo. Boa parte dela, é claro, está conectada aos ritmos afro-brasileiros: o samba, é claro, mas também o choro, o jongo, o carimbó, entre outros. A multiplicidade de ritmos concretiza a importância que se expressar musicalmente é parte importante das tradições negras.

Ancestralidade

Durante o processo de escravização e comercialização de pessoas negras, essas pessoas eram alvo de diversas ações que tinham como objetivo apagar a sua ancestralidade: eram separadas de compatriotas e, mesmo o processo de miscigenação – muitas vezes forçada – tinha como objetivo apagar os traços de África do corpo e da memória individual e coletiva de cada pessoa. Trabalhar com a ancestralidade é reconhecer como se deu a resistência a esse processo e como, mesmo diante de tanta violência, a ancestralidade africana permanece presente na vida das pessoas negras.

Memória

A memória é como se preserva a identidade, história e pertencimento de comunidades afro-brasileiras. Está presente de forma muito próxima à oralidade, por exemplo, na transmissão das histórias de família a cada geração.

Ludicidade

A ludicidade está relacionada à importância do brincar. E como um valor afro-brasileiro é passado dos mais velhos aos mais novos, por gerações, na construção de jogos, de brincadeiras, e da encenação, como, por exemplo, em diversos elementos que constituem o carnaval.

Cooperativismo

O cooperativismo está associado ao sentido de comunidade, símbolo de unidade, interdependência e fraternidade. É apoiar o outro pelo bem comum. Com a importância de competências como a empatia para o desenvolvimento de crianças e jovens, demonstra-se o quanto o senso de coletivo é essencial.

Energia vital

A energia vital pode ser entendida também como “axé”, que é o desejo pela vida. Nas tradições afro-brasileiras e religiões de matriz afro, entende-se que todos os seres têm uma força individual que circula entre o ambiente e o indivíduo, e o  impulsiona para o agir.

Corporeidade

O corpo, a expressão corporal, como nos expressamos com o mundo correspondem a esse valor civilizatório. É a relação do homem consigo mesmo e o sentido de pertencimento de cada um e como interage com os corpos dos outros.

Circularidade

A circularidade é o sentido que damos ao movimento cíclico da vida, que segue em um contínuo que volta ao ponto de partida. Esse valor aparece em manifestações culturais de origem afro e que estão relacionadas à formação de rodas, como as rodas de samba e pagode, rodas de capoeira, e aos encontros ao redor da fogueira.

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Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.