Na tinta dos alunos, um aprendizado sobre representatividade

Por Maria Laura Saraiva

A tradição escravocrata brasileira deixou suas marcas, também, na pintura. Nas poucas obras de arte em que foram retratados, o anonimato prevalece para muitos dos personagens negros esquecidos de nossa história.

É a luta contra esse apagamento que motiva Dalton Paula, artista de 41 anos, a produzir bustos que, por meio da arte, dão nome e rosto para importantes figuras negras do país, como Itamar Assumpção, Maria Felipa, Serena Assumpção e Zumbi dos Palmares. 

Esse diálogo sensível entre obra de arte e biografia foi alvo de estudo dos alunos do Ensino Infantil, com auxílio do professor André Tato. Aos 4 anos de idade, a turma foi convidada a conhecer melhor, por meio de pesquisas e imagens, esses líderes invisibilizados.


A descoberta de heróis

Com a exposição das obras de Dalton Paula, acompanhada de uma explicação de André sobre os seus elementos, o assunto foi introduzido em sala de aula. Como destaca o professor, a estética semelhante a de um retalho, com partes brancas, ilustra o esquecimento da história, enquanto o fundo azul simboliza o oceano, em referência à diáspora dos povos negros. 

Retratos de Itamar Assumpção, Serena Assumpção, Zumbi dos Palmares e Maria Felipa.

Logo de cara, o professor percebeu os alunos sensibilizados com o retrato de Zumbi dos Palmares. “O primeiro questionamento foi sobre o próprio nome ‘Zumbi’, que despertou dúvidas ao ser associado com a criatura semimorta de histórias ou filmes de terror”, lembra Tato. Mas bastou uma breve explicação sobre a vida e os feitos do líder quilombola para que o “monstro” ganhasse status de herói na sala de aula. 

“Imediatamente eles passaram a considerar o Zumbi como um herói brasileiro que lutou em defesa da liberdade”, diz. O sentimento de admiração foi expressado pela turma através de um desenho coletivo:

“Esse é o Zumbi do Palmares, ele tem esse tanto de braços para segurar as armas para a guerra contra a escravidão”, explicaram as crianças sobre o herói brasileiro. 

O estudo sobre o pintor e as respectivas figuras históricas se desdobraram também em outros ensinamentos. A turma teve a chance de entender mais sobre a composição dos retratos e suas funções ao passar dos séculos, além de realizar suas próprias versões dessas figuras em desenhos e pinturas.

Rafael representou Zumbi segurando uma lança, que, segundo ele, serviria para atingir os “malvados” que escravizaram os negros.

Já Antonia representou Zumbi com “cara de sério”, já que ele estava lutando contra a escravidão.

Maria Clara decidiu ilustrar um Zumbi sorrindo ao encontrar alimento após passar fome como escravo.


Dos retratos à sala de aula, a falta de representatividade negra 

A falta de representatividade negra, combatida nos retratos de Dalton, logo tomou dimensões práticas na sala de aula, motivando discussões. No andamento da atividade, os alunos perceberam que só havia uma criança negra entre eles, embora outros adultos negros estivessem presentes nos demais locais da escola. 

“Esse tipo de discussão foi mediada e incentivada. Começamos a questionar onde estavam as pessoas negras ao nosso redor e quais eram suas características. Apesar da pouca idade, sentimos que já existe um certo pensamento crítico em relação a isso – uma percepção que só se amplia com o desenvolvimento desse tipo de atividade”, explica André.

No retrato de João de Deus Nascimento, alfaiate negro considerado um dos líderes da Conjuração Baiana, Ivete, auxiliar de grupo, viu ressonâncias de sua própria vida como mulher negra. “Quando vejo essas figuras pretas retratadas pelo Dalton, eu sinto que eles são meus parentes. A mesma cor preta da minha pele é a deles”, disse.

Esse interesse motivou um maior envolvimento de Ivete com as atividades da turma, buscando refletir sobre a obra do artista a partir da sua própria história de vida.

Ivete levou o retrato dos pais para que a turma do Ensino Infantil pudesse ver, de perto, uma obra do gênero.

Com um antigo retrato dos pais em mãos, levados por ela à escola especialmente para a atividade, Ivete compartilhou com a turma sua relação com a família e com seus ancestrais. A narrativa não só prendeu a atenção dos alunos, como gerou pedidos para que fossem feitas pinturas da auxiliar e até mesmo um livro com o seu relato de vida – um gesto de afeto que busca manter vivos os feitos e memórias da população negra.

Inspirados pela história de Ivete, alunos fazem um retrato da auxiliar de grupo.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.