Silvane Silva
No dia 9 de janeiro de 2023, a Lei 10.639/09 completou 20 anos. Trata-se da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana nos estabelecimentos de ensino públicos e privados. Esse é um marco importante na luta do Movimento Negro. Vale aproveitarmos a data para refletir e debater sobre os avanços ocorridos pela força da Lei, bem como perceber os imensos desafios que ainda dificultam a sua completa implementação na maioria das escolas brasileiras.
É essencial resgatar o histórico da trajetória da população negra na busca por educação de qualidade e pela inclusão da história e cultura afro-brasileira e africana nos currículos escolares. Essa construção se inicia ainda no período escravista quando, em 1854, foi publicada no Brasil uma norma que estabelecia o aceite de estudantes de qualquer “cor” em instituições de ensino, desde que fossem livres. O que se observou foi que apesar da proposição legal, o cotidiano vivenciado nas escolas apontava para a exclusão das crianças negras. Registros históricos revelam segregação e não acolhimento para estudantes pretos e pardos em algumas instituições oficiais de ensino. Fatos que demonstram que as famílias negras desde muito tempo buscam por escolas que realizassem a formação de seus(suas) filhos(as) de maneira digna e igualitária. A historiadora da Universidade Federal de Pernambuco, Adriana Maria Paulo da Silva, apresentou em suas pesquisas um importante exemplo disso, os primeiros registros da existência de um espaço destinado exclusivamente para crianças pretas e pardas: a escola do professor Pretextato dos Passos e Silva.
No período pós-Abolição e nas primeiras décadas do século 20, o Movimento Negro continuou trabalhando para oferecer educação para a população negra. Nos anos 1930, a Frente Negra Brasileira que promovia educação e entretenimento a seus membros, além de criar escolas e cursos de alfabetização para jovens e adultos. Notável, também, a experiência do Teatro Experimental do Negro (1944-1968). Fundado por Abdias Nascimento, contestava a discriminação racial e formar atores e atrizes, além de alfabetizar os(as) seus(suas) participantes. Os dois movimentos apresentados contribuíram diretamente para a educação da população, que teve acesso à escolarização.
Outro importante registro histórico está na Declaração final do I Congresso do Negro Brasileiro, promovido pelo TEN, em 1950. Nela consta a exigência de obrigatoriedade nas escolas do ensino de história e cultura do continente africano, em sua diversidade, e das lutas das pessoas negras no Brasil. Destacam-se ainda as manifestações realizadas pelo Movimento Negro Unificado, no final da década de 1970 e início de 1980, que contavam com a mesma reivindicação. Como se vê, a educação foi historicamente pleiteada pela população negra brasileira, por meio de militância e luta.
É amplo o leque de manifestações em prol da garantia do direito à educação para as pessoas negras. Em 1986, a Convenção Nacional do Negro pela Constituinte, realizada em Brasília, com representantes de 63 entidades do Movimento Negro, foi marcada por reivindicações relacionadas ao ensino da História da África e da História do Negro no Brasil. Dentre as pautas principais estava o acesso da população negra à educação básica.
Em novembro de 1995, na Marcha “Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida”, que contou com mais de 30 mil participantes, representantes do movimento negro foram recebidos pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Na ocasião, entregaram o “Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial”. Do documento constavam propostas para a educação. Entre outros pontos sugeridos, havia o monitoramento de livros didáticos e manuais escolares, programas educativos oferecidos pela União, além do desenvolvimento de formações permanentes dos(as) educadores(as) para o tratamento adequado da diversidade e identificação de práticas discriminatórias presentes na escola.
Em 2003, a Declaração e o Plano de Ação da Conferência de Durban se tornaram referências mundiais e serviram de subsídio para que o mundo se atentasse para a necessidade de elaborar ferramentas de eliminação do racismo, da xenofobia e de outros modos de discriminação e de intolerância correlatos. Nesse mesmo ano, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos, foi criada em âmbito federal, com o objetivo de desenvolver políticas públicas de promoção da igualdade racial. Nesse cenário, o Brasil criou o Estatuto da Igualdade Racial – que, após anos de debates no Legislativo, foi aprovado sob a Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010. Essa aprovação marcou historicamente as vivências da população negra brasileira, uma vez que reuniu um conjunto de direitos a ela destinados.
Os exemplos apresentados são uma amostra das diversas manifestações políticas do Movimento Negro brasileiro pela garantia do direito à educação básica e pela inserção da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nos currículos escolares. Toda essa trajetória de lutas culminou na Lei nº 10.639/2003. Sua publicação não foi um fato isolado, como podem pensar alguns desavisados.
Desde a sua publicação, a lei movimentou mudanças. Uma das mais visíveis foi a ocorrida no mercado editorial. A publicação de livros didáticos e paradidáticos com as temáticas afro-brasileiras e africanas, livros de literatura e científicos escritos por pessoas negras, aumentou consideravelmente. Isso é resultado da Lei 10.639/03. Movimentou também alterações nos currículos das universidades, aumentou e fortaleceu os núcleos negros de pesquisa, incentivou a contratação de professores(as) e pesquisadores negros(as). Diversos cursos de formação continuada de professores foram realizados em todo o país visando diminuir a defasagem nos conhecimentos de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Ao longo desses 20 de publicação da Lei, algumas Secretarias de Educação, como a da cidade de São Paulo, elaboraram legislações e/ou materiais didáticos específicos visando facilitar a sua implementação.
Apesar dos avanços, muito ainda precisa ser feito. Como costuma dizer a professora Petronilha Silva, autora do parecer do Conselho Nacional de Educação que acompanha a Lei 10.639/03, as dificuldades encontradas para implementação se dão, principalmente, porque o que está contido na sua proposição é a discussão de um novo projeto de sociedade. A promoção do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana nos obriga a termos um compromisso com a educação das relações étnico-raciais. Torna-se obrigatório a descolonização do pensamento e das práticas curriculares e, mais do que isso, exige-se o rompimento com valores coloniais de sociedade.
Portanto, para se cumprir a Lei é necessário transformação de pensamentos e de atitudes. Desejamos continuar valorizando o mesmo projeto de sociedade colonial do século 16 ou vamos assumir o combate ao racismo e a promoção de outro projeto de nação e de sociedade?