Por Arianda Patrícia e Cibele Lucena, professoras do Vera Integral
O projeto de Artes tem acontecido a partir do eixo “Infância: cidade-natureza”, transversal ao trabalho do Vera Integral. A ideia de exercer o direito da criança à cidade e de captar o olhar delas para o território e sua relação com a natureza foi o que nos mobilizou. Em nossos primeiros encontros, propusemos a técnica da frotagem (do francês frotter, friccionar) e saímos pelo bairro da Vila Ipojuca para investigar as texturas dos muros, postes, grades, pneus, calçadas e cascas de árvores.
De volta ao ateliê, percebemos a surpresa no olhar das crianças diante da multiplicidade de marcas gráficas coletadas. Uma delas revelou que nunca havia desenhado tanto e que, mesmo assim, sabia que não tínhamos coletado “nem 1% da cidade”. Outra criança estava intrigada com o fato de que todas as paredes apareciam na frotagem “com chuviscos”, mesmo as mais lisas. Diante disso, outra colega observou: “É que, na verdade, nada é liso!”.
Esse processo despertou o interesse das crianças por investigar também as marcas de nossos corpos e a presença da professora Arianda Patrícia, suscitou uma curiosidade:
“Será que dá para pegar a textura do cabelo da Pati?”
De imediato, veio a resposta: “Para isso, eu preciso permitir!”
“E você deixa, Pati?”
“Sim, eu deixo vocês experimentarem a textura do meu cabelo.”
Em reflexão posterior a esse momento com as crianças, Pati pontuou com a sua dupla de trabalho: “Não vamos deixar passar! Vai ser importante elas experimentarem as texturas de meu cabelo, em sua maioria, são crianças que não tocam em cabelos crespos”.
A resposta da professora Pati às crianças, que reforçava o cuidado com o corpo (próprio e do outro) como algo importante, foi o ponto de retomada. Escolhemos apresentar o livro “Com Qual Penteado Eu Vou”, de Kiusam de Oliveira, porque a narrativa e as imagens poderiam aprofundar o estudo do significado das identidades e o papel da ancestralidade. Posteriormente, em duplas, crianças e professoras, respeitosamente, captamos as texturas de nossos diferentes cabelos.
A apreciação dos trabalhos produzidos, alimentada pelo livro de Kiusam, abriu uma conversa muito potente. As crianças perceberam que os cabelos e as pessoas do livro de Kiusam são diferentes e que, se a gente olhar com atenção, se observarmos bem, cada pessoa é uma. Perceberam também que o cabelo pode ser extensão do corpo, tem identidade, ancestralidade, vem de longe. Descobriram que, com giz de cera e papel, podemos captar as texturas dos cabelos e também alguns penteados, como aconteceu com as tranças da Estela, uma aluna do grupo. Observamos que o cabelo pode ser uma morada, uma casa para tranças, tiaras, flores e histórias, e que o cabelo da Pati conta as histórias do pai e também da sua mãe, que lhe dizia: “Filha, seu cabelo é sua origem!”.
Ao refletirmos sobre o processo, Patrícia comentou:
“Foi lindo trabalharmos esse conteúdo de um lugar coletivo, investigando todos os cabelos. O livro nos ajudou a ampliar a percepção da composição dos sujeitos. Não era só sobre o cabelo, nossas peles são diversas.”
Observamos a importância do cuidado, do respeito e do tempo, e o quanto é lindo celebrar a vida das nossas avós e bisavós. A coleta de texturas possibilitou olhar de perto e aprender que uma coisa sempre parece outra. Aprofundamos a investigação das peles e das histórias do corpo. Relacionamos corpo e cidades, com suas peles, registros, cicatrizes e marcas. Pudemos pensar sobre as diversas camadas que compõem uma educação antirracista: o letramento racial, a necessidade do estudo, e, sobretudo, a abertura para aprender a escutar. Quando surge uma fala ou um olhar racista em um grupo, como transformá-lo em intenção, intervenção e, sobretudo, em reflexões sobre as diferentes experiências e lugares que ocupam as pessoas? Como educadores e educadoras brancos podem enfrentar esses assuntos sem medo e sem moralizar a conversa com as crianças?
Em nossa reflexão, Cibele compartilhou:
“Eu reconhecia na provocação um conteúdo racial que não poderia escapar. Mas também reconhecia uma delicadeza, tratava-se de duas professoras, uma negra e uma branca, e a provocação se dirigia ao corpo e ao cabelo negros. Se eu tomasse a palavra e respondesse de imediato, colocaria você, Pati, no lugar de objeto de estudos”.
É preciso agir, e isso pede prontidão, sensibilidade e escuta. Por isso foi necessário compreendermos o que estava em jogo, “habitarmos” a situação, para o planejamento e continuidade das intervenções com as crianças.
O livro de Kiusam de Oliveira ainda nos permitiu convesar sobre vitiligo. Algumas crianças reagiram às imagens dizendo, “parece uma vaca” ou “ela passou protetor solar e não espalhou”. Elas estão lidando com algo novo, que não é cotidiano e têm uma escuta sensível quando problematizamos. Pati perguntou: “vocês nunca viram uma pessoa com a pele assim?” Muitas disseram que não. Explicamos o que é o vitiligo, apresentamos a elas a modelo canadense Winnie Harlow e o rapper brasileiro Rappin’ Hood, ambos com vitiligo, acreditando que elas podem entrar em contato com esse assunto com tranquilidade, sem assombros.
Quando dialogamos com escuta atenta, oferecemos referências do que significa diversidade, respeito e cuidado. Como professoras, muitas vezes já buscamos emergencialmente um livro para tratar determinada questão das crianças. Mas cada vez mais temos valorizado a importância de nos anteciparmos, de planejarmos inúmeras situações para tratarmos com profundidade conhecimentos tão fundamenais do nosso currículo. Precisamos acessar imagens, músicas e literaturas que abram mundos e colaborem com o nosso compromisso ético, estético e político diante de questões como o racismo. Só assim poderemos escutar e não fazer “vistas grossas” para falas que muitas vezes têm ressonância entre as crianças.