“Mudou a cara da universidade”: a Lei de Cotas, dez anos depois

Por Beatriz Calais, Gabriela Del Carmen e Maria Laura Saraiva 

“O filho da dona Mirna virou doutor. Era isso que a vizinhança falava assim que eu me formei em direito”, conta Irapuã Santana, que logo emendou os estudos e finalizou mestrado e doutorado na área. Hoje, o carioca nascido na zona norte do Rio de Janeiro e criado em Maricá, na região metropolitana, é procurador do município de Mauá, sócio de um escritório de advocacia, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB/SP e advogado voluntário da Educafro, ONG que trabalha na inclusão de jovens pobres, em especial negros, na universidade pública.

Seu extenso currículo revela uma trajetória de sucesso, mas que ganha ainda mais força ao sabermos onde tudo começou: na primeira turma de cotas da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), pioneira na adoção das ações afirmativas. “Prestei o vestibular em 2003 e ingressei na faculdade em 2004. A sala era majoritariamente composta por pessoas da zona Sul do Rio, que é uma região mais elitizada. Com as cotas sociais e raciais, quebramos esse padrão. Alguns chegavam com o carro do ano, enquanto outros vinham de ônibus”, conta Irapuã. 

Para ele, essa união entre dois mundos diferentes dentro de uma mesma sala de aula foi uma grande surpresa. “Foi a partir dessa experiência que eu entendi que as cotas dão uma chance para que a gente consiga mais do que o ensino. Elas abrem as portas para oportunidades, conhecimentos e contatos que não conseguiríamos no nosso ciclo de convivência. Um dos meus professores se chamava Luís Roberto Barroso, que hoje é ministro do Supremo Tribunal Federal. Como eu, filho de um maquinista e uma dona de casa, teria esse contato se não fosse na universidade?”. 

Dentro de casa, sempre foi incentivado a estudar e fazer do conhecimento um caminho para o sucesso, mas não é fácil ingressar no meio acadêmico do zero, sem os atalhos que, em muitos outros casos, aparecem através de redes de contatos. Mesmo com as cotas, o processo ainda envolve preconceitos e dificuldades financeiras que vão da alimentação à locomoção para a instituição de ensino. No caso de Irapuã, ele recebeu uma bolsa auxílio para custear o deslocamento e contribuir com as despesas familiares, mas nem sempre as políticas públicas funcionam dessa forma. 

O advogado Irapuã Santana.

Prazer, lei de cotas

Em um país que carrega um legado de mais de 300 anos de escravidão, as políticas afirmativas nasceram com o objetivo de promover a reparação histórica, cultural e social dos descendentes de escravizados. Em 2003, a UERJ foi a primeira instituição pública de ensino superior a adotar o sistema de cotas raciais e sociais, antes mesmo dessa política se tornar uma lei. A partir disso, outras universidades, como a UnB (Universidade de Brasília), começaram a seguir os mesmos passos. 

Foi apenas em 29 de agosto de 2012, no entanto, que a Lei N° 12.711/2012, conhecida popularmente como “Lei de Cotas”, surgiu, garantindo a reserva de 50% das vagas nas universidades e instituições federais de ensino técnico de nível médio para pretos, pardos, indígenas, pessoas com deficiência e estudantes de escola pública. 

A política teve uma contribuição importante para que, pela primeira vez na história, a população negra e dos povos originários representasse mais da metade dos estudantes matriculados nas universidades. Dados divulgados pela Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), com base no Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), mostram que o número de alunos indígenas, negros e pardos saltou de 42% do total de matrículas da rede federal, em 2010, para 53%, em 2020. 

A legislação brasileira prevê, ainda, que a política passe por um processo de revisão dez anos após o seu início — o que ainda não aconteceu.  Segundo especialistas em educação e antirracismo, além da manutenção dos direitos conquistados na lei de 2012, novas políticas e avanços devem integrar o sistema de cotas. Entre eles, estão o aprimoramento das comissões de heteroidentificação, o aumento da acessibilidade para a população indígena e o estabelecimento de programas de permanência estudantil. 

Embora alguns estudantes, como o próprio Irapuã, tenham tido acesso a uma bolsa auxílio durante a formação, essa iniciativa não está disponível em todas as universidades e nem para todos os cotistas. “Falta conquistarmos uma política estudantil que seja efetiva a ponto de garantir a manutenção desses alunos. Uma coisa é ingressar na universidade, outra é se manter”, destaca Dennis de Oliveira, professor livre-docente da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), e membro da comissão de heteroidentificação racial da instituição. 

“Nos últimos anos, tivemos muitos cortes de verbas e sucateamento das universidades federais, o que resultou no aumento da evasão. Precisamos consolidar a política e acolher o estudante cotista durante a formação. Almejamos reformas nos currículos, que ainda possuem uma perspectiva eurocêntrica, e atenção aos alunos que precisam conciliar trabalho e estudo”, conclui. 


A revisão da lei

Mas e a revisão? O que esperar dela, e quando deve acontecer? “Não fizemos ainda porque havia o risco de perdermos a cota”, explica Dennis. “Há alguns projetos de lei visando extinguir essa política afirmativa. Era mais fácil termos um retrocesso do que um avanço, então decidimos adiar a revisão”. Para Irapuã, que também vê ameaças aos avanços da última década, o mais importante no momento é manter a política ativa. “Temos que trabalhar para manter os direitos que a população negra já conseguiu”, ressalta.

Com o assunto em alta no momento, outras discussões sobre melhorias — como a criação de um ambiente acolhedor e auxílios financeiros para os cotistas — podem surgir. Além disso, Dennis cita a importância de se estabelecer uma cota racial para os docentes. “Boa parte do corpo docente das universidades é composta por professores brancos. Muitas reitorias têm resistência, mas na USP já estamos discutindo esse assunto. Essa presença de professores negros também ajuda no acolhimento dos alunos cotistas.” 

Já para Irapuã, outra mudança que precisa entrar no radar é a criação de um banco de dados. “Precisamos saber quem está entrando nas universidades e como eles estão se saindo durante o curso e após a formação. Sabemos o quanto ela é positiva, mas só assim vamos ter ideia do impacto real dessa cota. Temos pouco acompanhamento e de maneira descentralizada. Política pública tem que ser feita com base em dados e evidências.” 


O impacto que conhecemos

A Lei de Cotas mudou a ‘cara’ da universidade brasileira — e não apenas visualmente. Segundo Silvane Aparecida da Silva, coordenadora da pós-graduação em educação antirracista da escola Vera Cruz, quando as populações negras e indígenas adentram a universidade, elas trazem consigo uma multiplicidade de perspectivas que, naturalmente, resultam em novas reflexões. “Com isso, outros temas de pesquisa e bibliografias acabam inseridos no ambiente acadêmico, forçando uma ampliação dos acervos das bibliotecas para além dos clássicos europeus”, explica. 

Essa atualização no currículo, destaca a pesquisadora, é fruto de uma luta histórica do movimento social negro. “Desde antes da Abolição, a população negra reivindica o acesso a uma educação de qualidade que respeite os estudantes e que aborde os conhecimentos produzidos por africanos e afro-brasileiros”, diz. 

Para Adriana Dantas, doutora em educação pela USP e membro do Focus (Grupo de Pesquisa sobre Educação, Instituições e Desigualdade) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), a Lei de Cotas é uma conquista essencial para a inclusão de pessoas pretas, pardas e indígenas. “Diversos estudos mostram que as cotas possibilitaram a inclusão de grupos sub-representados nas universidades e que, sem elas, isso não seria possível. Tem sido um grande avanço nesse sentido”, afirma a especialista.

Analisando os impactos positivos da legislação, ela ressalta também a criação de oportunidades de acesso para alunos de escola pública. “Até então, por causa do vestibular e de processos seletivos muito concorridos como o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), os alunos de escolas privadas acabavam ocupando a maioria das vagas. A Lei de Cotas tem sido avaliada como uma importante política pública de inclusão”, pontua.


Fatos x Mitos

“No início, a ideia de que alunos cotistas se saíam pior e não seriam bons o suficiente para entrar nas universidades era uma preocupação. Hoje, há diversos estudos que mostram que isso não é real”, afirma Adriana. Essas questões foram analisadas por Ana Paula Karruz, doutora em políticas públicas e administração pública pela George Washington University, e por Flora de Paula Maia, mestre em ciência política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Em artigo publicado no Nexo Jornal, as especialistas examinam dados obtidos pelo GEES (Grupo de Estudos sobre Educação Superior) com informações do registro acadêmico de mais de 34 mil graduandos da UFMG. Os resultados mostram que há diferenças entre as notas do Enem de alunos cotistas e não cotistas, mas elas não se refletem em diferenças de rendimento durante a graduação. “O estudo mostra que, geralmente, alunos cotistas entram nas universidades com uma pontuação menor, mas conseguem alcançar os outros estudantes ao longo do processo e fazer um trabalho de qualidade”, explica Adriana.

Todos os argumentos negativos sobre as cotas são desmentidos na prática. Os cotistas possuem desempenho igual aos alunos regulares e não prejudicam o ensino — muito pelo contrário. Eles geram debates diferentes e melhoram o ambiente escolar”, completa Dennis. Para o professor, que também atua na comissão de heteroidentificação da USP, é importante falar sobre os mitos que cercam a temática de fraudes em cotas universitárias. 

“As fraudes existem, mas elas são residuais, não tiram o mérito e o impacto positivo da política. É preciso ter cuidado na hora de discutir esse assunto”, comenta. Na USP, algumas mudanças estão sendo feitas para que as fraudes sejam ainda mais raras. Uma delas faz parte da mudança do nome e da função da comissão racial da universidade: de “heteroidentificação” para “heteroclassificação”. 

“Nosso papel na comissão é identificar se aquele jovem se classifica nos critérios raciais estabelecidos para aquela política de cotas. Até o ano passado, o processo funcionava pela denúncia de fraude. Achamos esse método muito complicado e punitivo, então concordamos em fazer essa classificação antes da matrícula. Após o vestibular, avaliamos os alunos que se classificaram pela cota para saber se eles se encaixam ou não”, explica o professor. 

Mas o que determina se um aluno se encaixa ou não nas cotas raciais? — para muitos, essa é a maior dúvida referente ao assunto. Segundo Dennis, é preciso ter em mente que o preconceito racial, no Brasil, é de marca, e não de origem. “O preconceito acontece por conta da cor da pele e do fenótipo. Uma pessoa pode ter origem e parentes de pele negra, mas, por ter a pele mais clara, não sofre o mesmo preconceito e discriminação. Isso não significa que ela não possa se identificar como negra, mas, para a política de cotas, como a ideia é combater o preconceito de marca, ela não é classificada para a vaga. Caso tenha renda baixa, pode adotar a cota social.” 


Para além das cotas

Apesar dos indicadores mostrarem melhoria no cenário da igualdade racial no país — pelo menos nas salas de aula —, a jornada educacional dos grupos brasileiros marginalizados encontra outros obstáculos. “Pessoas negras e indígenas continuam sendo a minoria nos cursos de maior prestígio social e que possibilitam acesso a maiores salários”, destaca Silvane Aparecida. No estado de São Paulo, por exemplo, a graduação em medicina tem a menor proporção de negros, totalizando apenas 8% dos alunos, mostra lvantamento feito pela plataforma Quero Bolsa. Na mesma lista aparecem também os cursos de agronomia (15,2%), engenharia química (16,5%) e economia (17,4%).

“Nenhuma lei isoladamente será suficiente para garantir a equidade racial e diminuir as desigualdades sociais promovidas pelo racismo na sociedade brasileira. É necessário haver um conjunto de ações”, afirma a pesquisadora. Entre as medidas possíveis, ela destaca a promoção urgente de uma educação básica de qualidade e comprometida com o movimento antirracista, assim como alimentação adequada, livros, internet e ferramentas de estudo. 

“Exemplos como o meu são muito importantes, criam um efeito cascata muito legal. Mas é importante falarmos do caminho inteiro e buscarmos melhorias. Minha vida não se revolveu assim que eu entrei na faculdade (…) não podemos romantizar essa estrada. Faz parte da nossa responsabilidade humanizar esse caminho”, finaliza Irapuã. 

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.