Na literatura, a discussão do racismo pela dor

Por Gabriela Del Carmen

No Vera, os anos iniciais do ensino fundamental têm propiciado experiências criativas e enriquecedoras a partir do contato com a literatura. Além de estimularem a imaginação, o pensamento crítico e desenvolvimento linguístico das crianças, as obras literárias abrem portas para novas rotas pedagógicas que fortalecem o processo de formação antirracista.

Quando as professoras Simone Zorzan e Cláudia Mota, do 3º ano, sugeriram trabalhar com o livro “Cena de Rua”, mal podiam imaginar as análises e reflexões que surgiriam por parte dos alunos. Construída exclusivamente por imagens, a obra da escritora e artista plástica brasileira Angela Lago acompanha o cotidiano de um menino em situação de rua que trabalha nos semáforos. Com um detalhe importante: o protagonista tem a pele verde, enquanto os outros personagens são azuis e vermelhos.

“A intenção não era usar o ‘Cena de Rua’ para falar de questões raciais, e sim para fazer um trabalho de leitura de imagens. Mas os alunos interpretaram a obra como uma história sobre racismo, trazendo muitos conceitos e pensamentos a partir disso”, explica Simone.

Em quase todas as turmas, as crianças associaram a temática do livro ao racismo, atentando para a diferença de cor de pele dos personagens e o preconceito, a pobreza e discriminação presentes na narrativa. “Por que vocês estão falando que o menino é negro?”, perguntou Simone. “A maioria dos garotos pobres e que estão na rua são”, responderam.

A intenção das professoras já era abordar questões raciais em algum momento do semestre. “Por causa do projeto antirracista do Vera, planejávamos fazer um trabalho com personalidades negras que marcaram a história e se tornaram símbolo de resistência e inspiração. O ‘Cenas de Rua’ abriu nossos olhos para palavras e pensamentos equivocados que os alunos tinham e nos antecipou que muitas questões apareceriam na atividade seguinte”, diz Simone.


Refletindo sobre racismo estrutural

O caminho escolhido foi a leitura da “Coleção Black Power”, que apresenta biografias de pessoas negras que se tornaram referência para as novas gerações, como Nelson Mandela, Conceição Evaristo, Rosa Parks e Martin Luther King Jr. A expectativa era que os alunos trouxessem a potência dessas personalidades, reconhecendo o protagonismo e as contribuições de algumas das pessoas negras mais influentes do mundo. 

“Já imaginávamos que apareceriam questões de racismo estrutural e, no início, tínhamos um pouco de medo de não saber como abordar tanta coisa. Como conduzir essa conversa para mostrar que o racismo estrutural estava ali?”, questionava Simone. Como parte do processo de formação dos professores, as educadoras leram livros e teses de autoras como Djamila Ribeiro e Cida Bento, que serviram de referência para guiar as conversas em sala de aula.

“Muitos alunos tratavam o racismo como algo de antigamente, como se não fosse um problema atual. Ou diziam que em São Paulo não acontece, talvez em outra região”, conta Cláudia. Como lembra Simone, algumas crianças tinham receio de falar em “racismo” por acharem que soava ofensivo ou por confundirem o termo com os conceitos de bullying e machismo. “Vários pontos surgiram e nossa intenção foi conversar sobre essas questões, muitas vezes sem saber se estávamos indo pelo melhor caminho”, reconhece.

As crianças leram, se sensibilizaram e ampliaram o repertório. Pais e familiares também se engajaram no projeto e, inspirados pelas histórias, compraram a coleção completa de livros para aprofundar as discussões em casa. “Uma das nossas intenções com o círculo de leitura é que as conversas toquem a comunidade, então foi bem positivo as famílias se conectarem. Lançamos as provocações e a semente foi plantada”, diz Simone.

Apesar do engajamento, houve momentos de inquietação e desconforto – algumas crianças negras optaram por não participar das discussões (como você vai ler no próximo parágrafo, as educadoras buscaram auxílio especializado para poder abordar melhor essa recusa). “Talvez não se sentissem confortáveis em entrar em contato com a dor do racismo, ou pelo contexto da maioria da turma ser branca e estar se posicionando”, avalia Simone. Outras ficaram emocionadas ao ler os episódios de discriminação retratados nas histórias, conectando-se profundamente com as situações e as dores enfrentadas pelos personagens dos livros.

Foi quando as professoras decidiram recorrer à consultoria de Clélia Rosa. Especializada em questões étnico-raciais, a pedagoga destacou um ponto importante do projeto: apesar de serem histórias de sucesso e superação, as biografias carregam um contexto de luta e sofrimento, que impactam tanto os alunos negros quanto os brancos – nem sempre de forma positiva.

“Por um lado, a atividade trouxe falas importantes e evidenciou o racismo estrutural enraizado, o que foi ótimo para que pudéssemos conversar e desconstruir alguns pontos. Mas ao falar com a Clélia percebemos que, novamente, abordamos o tema pelo caminho da dor e do sofrimento – justamente o que não queríamos que acontecesse”, explica Simone. 

Para o próximo semestre, as educadoras estão reformulando o projeto a partir das discussões em sala e das recomendações de Clélia Rosa. “Vimos que era uma oportunidade de melhorar cada vez mais. É um processo não só para os pequenos, mas para nós também. Foi um trabalho de muito impacto para nós como professoras, pois faz parte da nossa formação e desconstrução”, completa.

Na nova seleção de livros, a intenção é explorar melhor a proposta inicial de reconhecer e valorizar os personagens negros como protagonistas. “Se introduzirmos a questão pela dor vamos continuar reforçando o que já está na sociedade. É importante que os alunos conheçam as personalidades negras por vias positivas para, depois, compreenderem a dor e a luta desses povos”, finaliza Cláudia.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.