“Lidar com relações raciais é colocar em jogo a subjetividade de cada um”

Entrevista com Cida Bento, doutora em psicologia pela USP e conselheira do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert)

Rodrigo Ratier

A íntegra da conversa está disponível como podcast. Acesse!

Em 2020, quando o Vera começou a desenhar as bases do que viria a ser seu pioneiro projeto de educação antirracista, a psicóloga Cida Bento foi uma das primeiras vozes a serem ouvidas. “Branquitude e racismo: o que temos a ver com isso?” foi uma das últimas palestras presenciais do Instituto Vera Cruz antes da pandemia, em março de 2020. Suas reflexões seguiram ecoando muito além: Cida chamava a atenção para a necessidade do reconhecimento da branquitude – a relação de dominação dos brancos sobre as demais raças –, e de como ela pode atrasar ou mesmo impedir o despertar para o antirracismo.

Filha de João, motorista, e Ruth, servente num posto de saúde, Cida foi a primeira da família a concluir a faculdade, avançar para o mestrado e, em seguida, para o doutorado pela USP. Em 1990, foi uma das fundadoras do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), onde atua como conselheira. Em 2015, a prestigiosa revista britânica The Economist a considerou uma das 50 pessoas mais influentes do mundo no tema diversidade.

Em sua tese, Cida criou o conceito de pacto narcísico da branquitude, uma espécie de acordo tácito – e, por vezes, inconsciente – entre os brancos para manter privilégios. Ocorre, por exemplo, com a falta de acolhida às ideias de pessoas negras nos ambientes de trabalho, quando brancos só contratam brancos ou quando uma reclamação é vista como “assertividade” na voz de um branco e “agressividade” na voz de um negro. O resultado é a perpetuação de um estigma, como escreve Cida em seu livro O pacto da branquitude, que “desde cedo cria diferenças e hierarquias nas narrativas sobre negros e brancos”.  

Leia a apresentação do livro O Pacto da Branquitude

Por estar ligado ao racismo estrutural, sua superação não é tarefa simples. Projetos de educação antirracista como o do Vera são um caminho, mas o desvelar dos preconceitos enraizados e naturalizados pode causar desconforto. Exige explicitação de realidades duras, profunda reflexão e, acima de tudo, compromisso com um outro pacto civilizatório, pautado pela equidade.

Zum-Zum – De que forma “o pacto narcísico da branquitude” pode se manifestar em um projeto de educação antirracista como o da Escola Vera Cruz?

Cida Bento – O pacto narcísico muitas vezes funciona a partir da lógica de funcionamento, da visão de mundo, da maneira como uma instituição tem as suas premissas, os seus paradigmas no campo da branquitude, que ela mesmo não conhece. Quando ela pensa a temática racial, ela pensa a partir de um escopo, a partir de uma perspectiva que às vezes resolve uma parte das coisas, mas subestima a reação da instituição. Toda instituição reage, às vezes abertamente, às vezes não. Então, tem vários elementos que precisam entrar no processo quando se faz um trabalho como instituição, seja ela qual for. As pessoas brancas não são pessoas transparentes. Elas têm uma visão de mundo, uma perspectiva e estão no lugar de decisão. Perceber-se assim ajuda a [reconhecer] questões que podem prejudicar o processo.

Como construir relações simétricas entre famílias brancas e negras apesar das diferenças sociais e econômicas?

As diferenças sociais e econômicas já são uma assimetria nas relações. Talvez a questão seja em que dimensões é possível uma relação mais equânime entre grupos que têm relações assimétricas – e em que dimensões é verdadeiramente possível a incidência de um grupo em condição de subalternidade dentro de uma instituição. Não adianta ficar pensando que é possível resolver tudo dentro de uma instituição em que as relações são atravessadas por questões que estão fora da instituição e que vão mudar de um momento para outro. É importante reconhecer isso no momento em que se planeja a ação conjunta para trabalhar num plano de ação realista e factível.

Tornar-se uma instituição antirracista significa romper com o pacto da branquitude. Que sentidos isso tem quando essa instituição é a escola?

O pacto da branquitude vai se rompendo ao longo do tempo. Um país que ficou quase 400 anos sob escravidão negra e, depois disso, com processos discriminatórios no cotidiano das relações em todas as dimensões sociais, não muda isso de uma hora para outra. Tornar-se uma instituição antirracista é reconhecer o tempo inteiro onde é que está o pacto da branquitude, no sentido de pacto que defende certos interesses – ou que desconsidera, ou coloca no degrau inferior determinado grupo. É importante perceber, por exemplo, se esse grupo se sente confortável. Em que medida é recebido como um grupo cuja voz tem a mesma força que outros grupos dentro da instituição. Lembrando que a instituição nunca tem as pernas para resolver tudo que diz respeito a determinado grupo, porque essa história de desigualdade atravessa a história dos grupos.  

Há um pacto social que os brancos precisam firmar quando se trata da luta antirracista? Quais suas bases?

As bases de um pacto antirracista são processos de diálogos contínuos, regulares, dos próprios brancos tentando lidar com uma visão de mundo e um modus operandis que atravessa a história do grupo na maneira como lida com a educação, com o escopo teórico, com metodologias, com a compra de materiais, com a formação de professores, com a relação com stakeholders. Ou seja, a instituição não muda de uma hora para outra, a desigualdade está incrustada e, em geral, não visível, não nomeada nas práticas sociais. Em geral, na escola é a mesma coisa. Por isso digo que essa relação, pensando especificamente nos brancos, deve ser contínua, com diálogos e diagnósticos frequentes.

De que forma se deve comunicar esse projeto à sociedade? 

Com o mínimo de marketing. Porque a instituição precisa ter musculatura para começar a falar que ela está na estrada. Sempre tem tensões, sempre tem resistência, sempre tem um percentual de pessoas que não quer e entende que isso é assistencialismo. A pressa para dialogar externamente gera fragilidade, porque a instituição subestima as resistências internas que vão sendo trabalhadas à medida que o processo avança. 

De que maneira o cotidiano da escola pode servir como espaço ético e político de transformação das relações raciais?

Entendo a educação sempre como um processo de transformação, de emancipação. A educação que busca transformar as relações raciais no sentido de buscar mais equidade se torna mais democrática, com todos os desafios que a democracia traz: diversidade de vozes, de pensamentos políticos, teóricos, metodológicos e pessoais – a maneira como as pessoas se sentem às vezes mexidas quando esse tema aparece. Todas as suas convicções estão em movimento. Ao lidar com relações raciais, você está mexendo com a subjetividade profunda de todo mundo. Pode ser que alguém pense: “Eu sempre me concebi de determinada maneira e agora a instituição está me propondo um reposicionamento, que eu olhe para mim mesma e que eu olhe para o outro de uma maneira diferente – e que isso se traduza nas minhas ações dentro da instituição”. Quando uma instituição começa a pensar em equidade, tem de pensar que ela vai mexer com aquela pessoa que sempre funcionou de outra maneira.

A escola, então, deve trabalhar a distinção entre igualdade, que é baseada no princípio da universalidade, ou seja, que todos devem ser regidos pelas mesmas regras e devem ter os mesmos direitos e deveres, e equidade, que reconhece que não somos todos iguais e que é preciso ajustar essa assimetria?

As instituições não funcionam para todos, mas muitas vezes o ideário dela, o que está escrito no papel, é que ela funciona para todos. Poder enxergar e modificar isso é um desafio. Ao buscar funcionar para todos sem reconhecer as assimetrias, a instituição cai na armadilha de se tornar antidemocrática. A ação afirmativa é muito importante, porque permite reconhecer a assimetria dentro do seu procedimento cotidiano de trabalho.

Como evitar que um projeto de educação antirracista em escolas privadas seja capturado pela lógica do consumo, como se a diversidade racial fosse um item a mais a se oferecer?

Quando uma instituição lida com equidade racial como um item a mais a se oferecer, ela pode cair em uma armadilha. Racismo é um tema muito profundo e muito forte, que atravessa e marca a história do país. Mexer com esse tema de uma maneira superficial e consumista pode levar a dificuldades entre as pessoas e mesmo institucionais. Em algum momento, a superficialidade e o improviso no tratamento do tema se reflete em alguma ação equivocada que pode acarretar problemas mais sérios.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.