Empreendedorismo social negro: as trajetórias e o papel da escola

Beatriz Calais, Gabriela Del Carmen e Maria Laura Saraiva

O que alguns chamam de sucesso e criatividade, para outros, é símbolo de resistência, necessidade e empoderamento. Afinal, empreender nem sempre significa criar um negócio visando o lucro ou um retorno financeiro. Quando se fala de empreendedorismo social, o grande objetivo é impactar comunidades de forma positiva, colocando o combate às desigualdades e a inclusão social no centro da discussão.

“O empreendedorismo social tem um papel muito importante na jornada de enfrentamento das desigualdades e no combate ao racismo, pois estimula o desenvolvimento econômico e a autonomia de pessoas que historicamente foram discriminadas”, afirma Paulo Rogerio Nunes, publicitário e cofundador da Vale do Dendê, aceleradora de impacto social com sede em Salvador (BA). Sua importância, segundo ele, está muito além da geração de renda. “É desafiar a narrativa de que pessoas negras e periféricas são apenas um objeto, permitindo que elas sejam o sujeito de seu próprio destino.”

Para Tony Marlon, educador e comunicador popular, o empreendedorismo social segue o mesmo conceito exposto por Paulo: mais do que um campo de ação, trata-se de uma visão de mundo que faz emergir novas estruturas, processos, serviços e produtos que sejam radicalmente antirracistas. “O chamado empreendedorismo social precisa ser o berço desse futuro que acolhe a todas e todos de maneira igual”, destaca, deixando claro que essa luta precisa ser legitimada pela sociedade como um todo. “Este também é um chamado para as pessoas brancas que querem deixar um mundo melhor aos seus filhos e filhas. Não existe um mundo melhor se ele for melhor só para alguns de nós.”

Como educador à frente da Escola de Notícias – uma iniciativa social do Campo Limpo, zona sul de São Paulo, que usa as tecnologias de informação e comunicação para o acesso e a ampliação de direitos sociais, culturais e econômicos da juventude –, Tony faz questão de ressaltar a importância da educação antirracista no combate às desigualdades e no empoderamento para a comunidade negra.

“Quando era estudante, fui levado à diretoria porque estava de pé na sala de aula. Lá, a diretora queria que eu assinasse uma advertência. Eu me recusei e ela me chamou de laranja podre. Disse que era por conta de pessoas iguais a mim que a escola estava como estava. Eu não fiz nada, só estava de pé apontando o meu lápis. Aquilo me marcou profundamente. Foi uma dor muito grande na época”, recorda. “Quando eu comecei a sonhar com um projeto que ensinasse comunicação, eu quis chamar de Escola de Notícias para ressignificar a palavra. Eu queria fazer as pazes com a palavra escola e provar para o mundo que o lugar onde eu gostaria de ter estudado poderia existir.” 

De certa forma, a história de Tony é a de um trauma que, ao ser devidamente elaborado, possibilitou novos horizontes. Mas esse é um processo custoso e cujo desfecho não costuma ser o mesmo para tantas outras pessoas. Se as escolas querem construir pessoas empoderadas, confiantes e resistentes, é preciso, antes de tudo, oferecer um ambiente que propicie essa formação. “Por isso nosso lema era: queremos construir a escola em que gostaríamos de ter estudado para formar a geração de comunicadoras que a gente merece ter. Deu certo”, revela. Se o objetivo é formar uma sociedade antirracista, a formação também precisa ser estimulada dentro das escolas. 


O poder da representatividade

Pare por um instante e pense em grandes empreendedores. Personalidades que entraram para a história com seus negócios revolucionários. Possivelmente, nomes como Bill Gates, Mark Zuckerberg, Steve Jobs e Walt Disney apareceram na sua lista. No Brasil, figuras como Silvio Santos, Roberto Marinho, Abílio Diniz e Luiza Helena Trajano costumam aparecer como referências.

Apesar de simples, esse exercício revela algo importante para a nossa reflexão. “Quando a gente fala em empreendedores de sucesso, normalmente não vem à mente uma pessoa negra”, observa Paulo Rogério. Reflexos do racismo estrutural, das desigualdades que prevalecem na sociedade, do baixo investimento em empresas fundadas por pessoas negras e da carência de apoio na administração dos negócios são alguns dos entraves para esses negócios prosperarem.

“O sucesso de empreendedores negros e periféricos é fundamental para inspirar as crianças que serão os futuros empreendedores”, afirma Paulo. Embora as referências sejam poucas, ele reconhece que o país vive um momento de mudança, com o surgimento de jovens-adultos empreendedores que servirão de modelo para as próximas gerações. “Precisamos de representatividade em todas as áreas para inspirar as crianças, principalmente as indígenas e afrodescendentes, a entenderem que podem chegar aonde quiserem e buscar novos caminhos”, explica.

Para Tony, também é importante que o conceito de “sucesso” seja repensado. “Acho importante que consigamos construir cada vez mais referências de sucesso para quem mora nas periferias e favelas, mas não aquele sucesso solitário, meritocrático e individualista que a sociedade vende”, opina. “Eu acho muito engraçado como alguém se considera realmente fantástico sem pensar na interdependência. Sem pensar em como ele precisa da pessoa que vende o pão e o café para ele no mercado. Tem gente que acredita, realmente, que todo o seu sucesso depende apenas de si mesmo. Sozinho, a gente nem existe.” 


União feminina

As mulheres negras sabem bem o que é isso. O movimento do tipo “uma puxa a outra” está na raiz do empreendedorismo feminino brasileiro, já que, para chegar lá, elas precisam enfrentar ainda mais obstáculos do que seus pares do gênero masculino.

Segundo uma pesquisa promovida pelo Sebrae, em parceria com a Fundação Getulio Vargas (FGV), o número de empresárias negras que tiveram empréstimos negados é 50% maior do que entre as brancas. Além disso, em 2021, a renda média das negras foi de 1.471 reais – valor 57% menor do que o recebido por homens brancos, 42% inferior ao de mulheres brancas e 14% abaixo dos homens negros, de acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

Talvez por isso, estar à frente de um negócio social seja ainda mais simbólico para elas. “Atuar em rede foi fundamental para a minha trajetória, tive muitas mulheres que me apoiaram ao longo deste tempo”, comenta Adriana Barbosa, fundadora e CEO da Feira Preta, maior festival voltado ao empreendedorismo negro da América Latina, com sede em São Paulo (SP).

Na visão da executiva, o investimento nas mulheres de regiões periféricas traz benefícios para toda sociedade, embora as integrantes das classes C, D e E sejam as mais impactadas. “Boa parte dos negócios que estão alocados nas comunidades fazem a economia circular dentro desses territórios”, destaca. 

Adriana reconhece que a presença de lideranças femininas negras pode fortalecer a autoestima e o desenvolvimento pessoal de jovens que estão dando seus primeiros passos rumo ao futuro profissional. De acordo com ela, esse espelho serve como um incentivo ao autoconhecimento e, mais tarde, ao surgimento de outras empreendedoras. 

Para a CEO da Feira Preta, o objetivo do empreendedorismo social é acelerar o desenvolvimento do país ao dar voz às populações periféricas. “O que seria de nós se ainda hoje não tivéssemos um ecossistema de organizações olhando especificamente para o recorte racial?”, questiona. 

Nessa perspectiva, as escolas ganham destaque como ferramenta de auxílio nessa luta. “A educação é um princípio fundamental, tanto para se manter como empreendedor como para alavancar os outros grupos”, conclui Adriana.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.