Maria Laura Saraiva
Em 1963, na produção hollywoodiana Cleópatra, Elizabeth Taylor imortalizava o que, depois, se consolidaria como imaginário coletivo a respeito da aparência física dessa personagem histórica. De pele branca, olhos claros e traços europeus, a atriz se constituiu como referência à beleza da governante egípcia mais famosa da história. Mas, apesar disso, os arquivos históricos não parecem confirmar tal construção, já que apontam a ascendência mista e parcialmente africana da rainha.
Não foi apenas a popularidade do filme de Joseph L. Mankiewicz que contribuiu para a associação de Cleópatra a uma mulher branca. No contexto brasileiro, esse fenômeno integra a tentativa de branqueamento populacional e cultural levada adiante desde o período colonial, segundo descrito pelo pesquisador Petrônio José Domingues.
Para o autor, a elite brasileira utilizou da imigração europeia e do declínio da população negra após a abolição (1888) para promover um culto à ocidentalização da história.
Sob esse cenário, as professoras Teresa Maciel e Sheila Perina de Souza, da Escola Vera Cruz, propuseram um debate a respeito da prevalência do eurocentrismo na matriz curricular tradicional. Sheila, autora do artigo “A ideologia de branqueamento nas imagens do Antigo Egito: contribuições para práticas de ensino nos anos iniciais”, publicado originalmente na revista Veras, destaca o papel coadjuvante atribuído à história africana na discussão escolar.
“Sendo negros frequentemente associados a aspectos depreciativos, o Egito, tido como uma das mais fantásticas e exuberantes sociedades antigas, tem a sua africanidade negada pela Europa, e também pelo Brasil – inclusive nas práticas escolares”, afirma.
Dessa forma, o imaginário de uma Cleópatra branca, muito mais do que um mero capricho cinematográfico, se consolida como um discurso que, em última instância, legitima a hegemonia europeia em detrimento de uma história africana que vai muito além de um continente escravo.
Também integra a discussão o fato da governante possuir ascendência miscigenada grego-egípcia, o que, por sua vez, faria com que ela apresentasse características híbridas entre as etnias. Apesar disso, segundo a professora, há uma persistência na branquitude de Cleópatra que ultrapassa provas e dados históricos.
“A escolarização brasileira, desde os seus primórdios, segue se fundamentando na perspectiva eurocêntrica. O ensino das sociedades africanas, anterior à escravização, ainda é um desafio nas escolas, principalmente para as crianças pequenas. Apesar do Egito Antigo ser uma pauta frequente, sua africanidade costuma ser omitida”, ressalta a pesquisadora.
A discussão do tema em sala de aula
O tema foi abordado em sala de aula por Sheila e Teresa com a turma do 2o ano do Ensino Fundamental do Vera. A intervenção, desenvolvida com base em pesquisas e trabalhos científicos, teve como objetivo contrapor as representações tradicionais que, em muitos casos, haviam chegado aos alunos através da mídia e de outros meios culturais.
Conforme relata Sheila, os alunos, em sua maioria, já apresentavam percepções afetadas pelo processo do branqueamento. “Vimos que a fala da crianças sobre os egípcios era bastante influenciada pelo discurso midiático que branqueia os antigos egípcios. Elas contaram que, nos filmes que assistiram, eles eram representados como brancos”, afirma.
Para desmistificar a representação europeia da rainha e apresentar as teorias envolvendo sua etnia, a professora compartilhou com a turma uma moeda esculpida com o rosto da governante há mais de dois mil anos, bem como uma reconstrução das feições de Cleópatra desenvolvida pela pesquisadora Sally-Ann Ashton, da Universidade de Cambridge.
Como conta Sheila, a reação dos alunos foi de surpresa. A pesquisadora ressalta que não é possível conhecer o Brasil sem compreender a história da África. “Uma educação que inclua a história do continente, desde a mais tenra idade, é peça fundamental para o combate ao racismo aqui no país”, conclui.