Brasil, século 21: a nova diáspora africana

Por Beatriz Calais

Em uma conversa por telefone, a congolesa Benediction Kipuni, de 27 anos, conta sobre o seu sonho profissional: atuar na área de moda e estética. No seu WhatsAapp e no Instagram, chamam atenção as fotos de maquiagens cuidadosas e unhas em gel delicadas, técnicas que ela aprendeu após passar mais de seis anos morando no Brasil após deixar seu país natal em busca de uma nova vida.

Nascida na cidade de Goma, no interior da República Democrática do Congo, Benediction sempre adorou o seu país, mas sabia que existiam algumas limitações quanto a estudo e trabalho. Por isso, em dezembro de 2015, ela decidiu se mudar para o Brasil. “Eu vim para buscar novos horizontes e oportunidades que não seriam possíveis no Congo. Precisava estudar e trabalhar”, diz. 

Além de cursar português ela estudou um ano de maquiagem e aproveitou o seu próprio conhecimento em costura para vender roupas étnicas com tecidos importados da África, o que ajudou na geração de renda para sobreviver por aqui. 

De volta ao Congo no começo do ano, Benediction pretende regressar ao Brasil em definitivo neste segundo semestre. O motivo? Para ela, aqui está o destino ideal para seu crescimento técnico e profissional, impressão crescentemente compartilhada por outros milhares de imigrantes.


Esperança de acolhimento no Brasil

De acordo com o informativo mensal de janeiro de 2023, elaborado pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), desde janeiro de 2021 a emissão de vistos pelos postos consulares brasileiros apresenta tendência de aumento, partindo de 3,8 mil vistos para 9,2 mil em janeiro de 2023.São pessoas que vêm para cá em busca de melhores condições de vida e proteção social, fugindo de conflitos em sua terra natal. 

A República Democrática do Congo, por exemplo, ainda vive resquícios de violência por conta da guerra civil que assolou o país em 1997 e acabou oficialmente em 2003. Segundo os últimos dados da Agência da ONU para Refugiados (Acnur), já são mais de 918 mil refugiados congoleses em busca de uma vida nova em outros lugares do mundo. 

Além da violência, a situação política do país também acaba impactando negativamente em questões básicas da sociedade, como educação e mercado de trabalho. “Aqui no Brasil a área de estética é muito avançada, então eu posso voltar para o Congo com um conhecimento muito maior. Posso ajudar com pelo menos 1% de avanço no meu país”, explica Benediction. 

Por mais que o Brasil também passe por grandes desafios políticos e econômicos, ainda é visto com otimismo por muitos imigrantes, como no caso dos angolanos. “Decidi me mudar para cá em 2011 motivado pelos estudos”, conta Isidro Sanene, que em setembro de 2022 idealizou e fundou o Centro Cultural Casa de Angola, organização com o objetivo de fortalecer os laços culturais entre os dois países. 


Uma relação secular

Morando na capital paulista há 10 anos, Isidro quer fortalecer a cultura africana para acolher imigrantes que, assim como ele, arriscam a vida neste país cuja relação com Angola remonta a séculos atrás. Uma pesquisa feita em 2015 sobre o tráfico de pessoas escravizadas no Brasil mostra que, até o século XIX, a Bahia recebia, por ano, cerca de cinco a oito mil pessoas escravizadas em seu território, a maioria de Angola. 

Em tempos mais atuais, o país foi o primeiro a reconhecer a independência de Angola, em 1975. Com boas relações diplomáticas, em 1980 também assinou o Acordo Geral de Cooperação Econômica, Técnico-Científica e Cultural, que constituiu as bases do desenvolvimento e colaboração entre as duas nações, que historicamente possuem uma trajetória parecida, visto que foram colônias portuguesas – uma proximidade linguística, cultural e diplomática, por vezes, esquecida.

De acordo com a Embaixada de Angola no Brasil, estima-se cerca de 10 mil cidadãos da diáspora angolana vivendo em solo brasileiro — majoritariamente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal. “Há uma relação entre os países, então trabalhamos com essa reconexão ancestral”, explica Isidro, destacando que a comunidade angolana em São Paulo é grande e expressiva. 

Mais do que acolher, a Casa de Angola também realiza exposições de arte e leciona cursos como línguas africanas, empreendedorismo e filosofia. Além da idealização de Isidro, o espaço também recebe ajuda institucional do Consulado, o que contribui para a manutenção do projeto. No entanto, essa iniciativa ainda é raridade quando se trata do acolhimento de imigrantes africanos no Brasil. 


Não há mar de rosas

Quando decidiu se mudar para o Brasil, Benediction teve uma rede de apoio junto a colegas do seu pai, que já residiam por aqui e a convidaram para morar com eles. O quadro geral, no entanto, costuma ser diferente. Sem contar com um centro para refugiados, muitos chegam sem saber para onde ir e a quem recorrer.

Como resultado, em 2022 o número de imigrantes em situação de rua atendidos pela Prefeitura de São Paulo bateu a maior marca dos últimos anos: 6.387 pessoas de 93 nacionalidades. Atualmente, há mais de 1.875 imigrantes acolhidos pela prefeitura, segundo a pasta de Assistência e Desenvolvimento Social. No meio desses dados, chama a atenção a presença de imigrantes angolanos, que quase quintuplicou de 2020 para 2022, indo de 267 para 2.486 registros. 

A proximidade linguística, cultural e diplomática entre os países, como explicou Isidro, é uma das respostas para esse número acentuado. Uma vez no Brasil, no entanto, os imigrantes acabam encontrando desemprego, burocracia, falta de oportunidades e preconceito. A própria Benediction, que tinha uma rede de apoio no país, passou por casos de racismo em sua passagem por aqui.

“No Congo não existe preconceito. Somos todos negros. Quando cheguei no Brasil, me senti muito mal ao passar por situações assim. Eu nunca tinha vivido isso. Tinha 19 anos e achei horrível”, recorda. “Um dia eu estava no ônibus e uma senhora não quis sentar perto de mim. Eu não entendia o motivo, mas quando levantei para descer ela finalmente decidiu sentar. Além disso, quando passou por mim, fez o maior esforço para não encostar. Aí eu entendi.” 

Lidar com essa situação foi uma das maiores dificuldades de Benediction no Brasil. “Isso me incomodou muito no início. Achei que tinha algo errado comigo. Mas essas são as minhas características. Sou negra, tenho o cabelo crespo e eu me orgulho disso. Não deixei o preconceito mexer com a minha autoestima”, diz ela. 

Embora o estereótipo de país acolhedor represente uma dificuldade para que essa discussão avance, Isidro não vê outra alternativa a não ser levá-la adiante. “O racismo estrutural é muito presente na sociedade brasileira. Não deveria ser normal, mas é muito comum”, afirma. Por mais que ambos gostem da vida no Brasil e valorizem os aprendizados que tiveram até o momento, é preciso refletir sobre o que falta para que o país realmente faça jus à fama de acolhedor. 

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.