Por Gabriela Del Carmen e Maria Laura Saraiva
Nas últimas décadas, as sociedades vêm se conscientizando sobre a importância de se questionar as bases ideológicas dos discursos preconceituosos. Nesse contexto, as escolas se mostram um espaço propício para a discussão de novos conceitos. Um dos mais férteis, um polissílabo, tem potência explicativa proporcional ao seu tamanho: interseccionalidade.
Vamos a uma definição. Interseccionalidade é um conceito sociológico que remete à teoria dos conjuntos da Matemática. Você se lembra? Entre dois conjuntos – geralmente representados de forma esquemática como círculos –, a intersecção diz respeito aos elementos que pertencem simultaneamente aos dois conjuntos. A capa desta edição da Zum Zum traz uma representação gráfica dessa ideia.
Sociologicamente, os “conjuntos” podem representar as características mais importantes de determinado grupo: identidade de gênero, raça, etnia, localização geográfica, idade – ou seja, os fatores sociais que definem uma pessoa. Vários deles articulam dinâmicas de poder e se tornam indicadores de opressão. Para muitos indivíduos, esses fatores se sobrepõem. Numa palavra, eles interseccionam.
A interseccionalidade nomeia o cruzamento de marcadores sociais nas pessoas. Uma mulher negra periférica, por exemplo, enfrenta não só questões de gênero, mas também de raça e classe. Outra dinâmica se forma com base na sua sexualidade ou classe social, com novas camadas de privilégios e desigualdades surgindo a partir da junção de todas estas características.
“No sistema social existem diversas dinâmicas de exclusão e marginalização que respondem a estruturas de poder como racismo, patriarcado e questões de classe. Quando elas se cruzam, estamos lidando com a interseccionalidade”, explica Alexsandro Santos, Diretor de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica (SEB/MEC), em entrevista para o podcast “O Futuro Se Equilibra”, produzido pela plataforma Porvir com o apoio do Instituto Unibanco.
O conceito de interseccionalidade surgiu em 1989 a partir da teórica e ativista norte-americana Kimberlé Crenshaw. Desde então, vem sendo trabalhado e desenvolvido por estudiosos ao redor mundo, incluindo a renomada professora estadunidense Patricia Hill Collins e a brasileira Carla Akotirene.
“A ideia nasce das reflexões do movimento feminista – particularmente do movimento feminista negro – sobre as interconexões dos processos de opressão e relação de poder, combinando elementos relacionados à questão de classe, gênero e aspectos étnico-raciais”, observa Maurício Hashizume, professor na Universidade de Gurupi (UnirG).
A interseccionalidade é fundamental para que as pessoas construam uma visão mais ampla e aprofundada sobre questões sociais, entendendo o racismo em sua dimensão estrutural. “Ela nos permite compreender as camadas que existem em torno do problema. Uma leitura interseccional pode relacionar uma situação racista com, por exemplo, a desigualdade de gênero ou diferenças de classe”, diz o especialista.
Os impactos na educação
Segundo os especialistas, a interseccionalidade também possui um papel fundamental na promoção da equidade em sala de aula. Desde 1988, a Constituição brasileira assegura o direito e acesso à educação para todos os cidadãos. Apesar disso, a maioria das escolas ainda reproduz uma estrutura de desigualdade e exclusão.
“Embora a escola seja um lugar socializador, também é nela que vamos entender que as diferenças entre os grupos existem”, aponta Thais Sena, coordenadora pedagógica da Ebony English, escola dedicada ao ensino de inglês com cultura negra. Para ela, a interseccionalidade é uma ferramenta da luta antirracista ao devolver humanidade para a educação de crianças negras, indígenas e asiáticas que, de outra forma, não teriam a sua cultura contemplada no ambiente escolar.
Para Cássio Rodrigues Faria, pesquisador de educação da Universidade Federal de Uberlândia, as escolas precisam se ancorar na interseccionalidade como ferramenta analítica que dá sentido às práticas escolares. “As salas de aula precisam promover discussões sobre gênero e raça de maneira interligada, proporcionando um olhar panorâmico sobre temáticas que se apresentam como desafiadoras e, ao mesmo tempo, primordiais para o processo de ensino e aprendizagem”, destaca.
Na sala de aula, a aplicação do conceito considera a inclusão de conteúdos que façam parte da plenitude de experiências vivenciadas por aqueles alunos, levando em consideração, também, a realidade política e social na qual estão inseridos.
“Existem atravessamentos a serem considerados pelos educadores, mesmo que eles não se sintam diretamente atingidos por eles”, ressalta Thais. Na visão da pesquisadora, lidar com a interseccionalidade na educação significa oferecer um ensino mais próximo à realidade de estudantes de diferentes etnias, gêneros e classes sociais – sem que a cultura branca seja adotada como padrão universal.
Um primeiro passo para avançar nesse sentido é considerar a formação dos próprios professores. Além de um currículo que inclua a diversidade de culturas e formas de conhecimento, também é relevante promover pesquisadores negros e suas respectivas produções intelectuais na sala de aula, de forma a torná-los acessíveis para os estudantes pretos… e brancos.