Beatriz Calais
Segundo dados da Fundação Cultural Palmares, há 3.754 comunidades quilombolas espalhadas pelo Brasil. Embora a maior concentração esteja em Minas Gerais, Bahia e Maranhão, o estado de São Paulo conta com 58 comunidades. Desse total, 37 ficam no Vale do Ribeira, uma região conhecida pela forte presença de indígenas, quilombolas, caiçaras e caboclos, uma marca de sua pluralidade sociocultural e étnica.
Localizado entre duas grandes regiões metropolitanas – São Paulo e Curitiba –, o Vale do Ribeira carrega um passado de intensa exploração durante os períodos colonial e imperial, o que hoje se reflete num dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado de São Paulo, com elevadas taxas de mortalidade infantil, analfabetismo e desemprego.
Mas, apesar da precariedade social, a região dispõe de uma riqueza que a coloca na vitrine de muitos interesses econômicos, já que, no Vale, estão presentes as maiores manchas contínuas remanescentes de Mata Atlântica do Brasil, o que tem motivado disputas pelo domínio dessas terras.
Considerando essa complexidade, o Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras da Universidade de São Paulo (NUPAUB-USP) publicou estudo com um olhar voltado à discriminação contra quilombos no Vale do Ribeira, buscando entender o papel da escola pública nesse desafio. A autoria é de Lisângela Kati do Nascimento, cientista social e professora da Universidade Federal do ABC (UFABC). O artigo foi publicado originalmente na revista Veras, publicação acadêmica do Instituto Vera Cruz.
Para Lisângela, que foi criada no Vale do Ribeira e desenvolveu a pesquisa entre 2017 e 2019, o protagonismo da escola pública esbarra num descompasso entre a atividade legislativa e a implementação, na prática, das novas diretrizes. Em outras palavras: apesar dos avanços na elaboração de leis, resoluções e diretrizes curriculares visando uma educação diversa, o que está no papel não tem se traduzido em ações no contexto das escolas.
Mas por que isso acontece? A resposta está no próprio Vale do Ribeira. E, para entendermos melhor, é preciso conhecer um pouco mais a região.
Prazer, sou o Vale do Ribeira
Para preservar seu patrimônio ambiental, grande parte da região está protegida sob a categoria Unidade de Conservação (UC). Embora cumpra uma função importante na defesa do meio ambiente, tal designação acaba impactando o modo de vida das comunidades tradicionais, que sobrevivem graças à utilização dos recursos naturais.
O território tem sido palco de inúmeros conflitos socioambientais, já que muitas famílias tiveram suas casas sobrepostas por alguma UC – o que pode se configurar como uma prática de racismo ambiental, já que a ação desconsidera a presença secular de tais comunidades e seus modos de manejo dos recursos naturais.
Além dos conflitos socioambientais, a partir de 1980 um projeto de construção de barragens no rio Ribeira de Iguape ganhou força. Vendendo-se como uma solução para os baixos indicadores sociais da região, argumentava-se que as barragens poderiam fomentar o desenvolvimento econômico no local. Mas havia também o interesse pelo território. Ainda em 1980, buscando proteção, as comunidades quilombolas fundaram o Movimento dos Ameaçados por Barragens do Vale do Ribeira (Moab).
Embora tenha se mostrado importante para a luta dessas comunidades, a iniciativa tem provocado reações de setores da sociedade, que têm acusado a movimentação contra a Unidade de Conservação e o projeto de barragem de impedirem o progresso da região. Tal visão, que caminha junto com a estigmatização dos modos de vida tradicionais, acaba reforçando a discriminação contra as comunidades quilombolas.
Para a surpresa de Lisângela, nenhum desses assuntos é abordado dentro das escolas. “O que ocorre, muitas vezes, é que determinados grupos socioculturais e étnicos aparecem no currículo escolar apenas em datas comemorativas. As comunidades quilombolas são lembradas no dia da Consciência Negra e os indígenas brasileiros no dia 19 de abril”, explica a cientista social no artigo. “Além disso, ainda prevalece uma perspectiva folclórica no encaminhamento pedagógico destas datas comemorativas.” Para a estudiosa, esse tipo de abordagem “congela” a cultura e acentua as diferenças.
Em conversa com os professores da região, Lisângela descobriu que, para evitar desconforto entre os alunos, conflitos locais não são abordados em sala de aula. “Numa mesma sala se encontram alunos quilombolas, caiçaras e caboclos, bem como filhos de fazendeiros, grileiros e comerciantes, cujas famílias têm pontos de vista diferentes em relação à construção de barragens no rio Ribeira. Em razão disso, eles consideram mais adequado evitar a discussão e não problematizar a temática”, explica.
Ao invisibilizar esses assuntos, Lisângela acredita que a escola está contribuindo para que os alunos oriundos de comunidades tradicionais continuem sendo vítimas de discriminação étnica e racial na medida em que são vistos como atrasados diante da lógica capitalista. “Ao desconsiderar os alunos como sujeitos, estamos contribuindo para que seus valores culturais sejam invisibilizados ou marginalizados na escola”, diz.
A cientista social, que iniciou essa pesquisa se perguntando sobre o combate à discriminação no Vale do Ribeira, espera que os alunos da região também tenham espaço para fazer questionamentos. Em sua visão, eles podem começar com perguntas básicas e profundas, como: “Quem sou eu?”, “Onde vivo?” e “Qual a minha história?”.