
Silvane Silva
Jera Guarani, liderança da terra indígena Kalipety, na cidade de São Paulo, relembrou, durante palestra no Vera em fevereiro, o quanto os sistemas de ensino e profissionais de educação não indígenas são resistentes em oferecer nas instituições escolares uma educação que respeite os modos de vida dessas comunidades.
Ela citou como exemplo o momento de criação das primeiras escolas de Educação Infantil. Na época, as mães disseram que, na cultura Guarani, mesmo as crianças muito pequenas não dormiam durante o dia. Ainda assim, as educadoras não indígenas colocaram berços na escola e obrigavam as crianças a dormirem depois do horário do almoço. Mesmo após a insistência das mães em dizer que não era esse seu costume e que as crianças Guarani só dormem quando escurece, a escola persistia na ideia de que toda criança pequena precisa dormir durante o dia. Um exemplo nítido de desrespeito à cultura do território e de negação da existência de diferentes infâncias.
Os estudos sociais sobre infância ou a sociologia da infância romperam com a visão adultocêntrica da sociedade e possibilitaram que pesquisadoras(es) e estudiosas(os) pudessem visibilizar e analisar as crianças como atores e atrizes sociais que precisam ser vistas e entendidas em diferentes contextos sociais. As instituições educativas e escolares passaram a ser observadas a partir dos estudos das crianças e suas diferentes infâncias.
Nilma Lino Gomes e Marlene Araújo organizaram uma coletânea de artigos intitulada Infâncias negras: vivências e lutas por uma vida justa, reunindo pesquisas que demonstram a urgência de “construirmos práticas pedagógicas e metodologias que possibilitem às crianças falarem de si, sobre a sua relação com o outro e sejam protagonistas das suas próprias vidas”. As autoras nos convidam a lembrar dos currículos escolares como espaço de disputa de poder e reconhecer o espaço escolar como um importante lugar de promoção da emancipação das infâncias subalternizadas. Crianças pobres, negras, indígenas, quilombolas, ribeirinhas necessitam que ocorra o reconhecimento das especificidades de suas infâncias.
Se o racismo é aprendido e construído em sociedade, o antirracismo também. A professora Nilma afirma que uma das principais premissas que precisamos adotar é a compreensão de não neutralidade da infância. Ela não está blindada dos preconceitos e discriminações. Por isso, não cabe à Educação Infantil e à Educação das infâncias de forma geral e aos seus currículos negar a existência do racismo, mas é necessário que estas “sejam instâncias nas quais as práticas de reconhecimento, justiça, direito e emancipação se façam presentes entre os sujeitos nas escolhas didáticas, no cuidado com o corpo de bebês e das crianças pequenas, negras e brancas”, no currículo escolar, no trato com familiares.
Portanto, cabe aos cursos de formação de professores (inicial e continuada) abordar as diferentes infâncias de modo a tornar conhecida a nossa multiculturalidade e multirracialidade. Reafirmando a pluralidade e a diversidade de pertencimentos e a não hierarquização das diferenças.
Como nos ensina a professora Marlene Araújo, desde cedo podemos aprender e conhecer diferentes realidades e compreender que a experiência social do mundo é muito maior do que nossa experiência local. Não podemos privar nossas crianças de conhecer os diversos povos e culturas que compõem a humanidade. Esse é nosso compromisso com a decolonialidade, que promove a emancipação, combate injustiças e desigualdades.
Para saber mais
Livro Infâncias negras: vivências e lutas por uma vida justa, organizado por Nilma Lino Gomes e Marlede de Araújo, 208 p., Ed. Vozes, R$ 58,59.