História e cultura indígenas: conhecimentos para navegar o futuro

Wellington Soares

Jerá Guarani, uma das lideranças da Terra Indígena Tenondé Porã, estava sentada do lado de fora de uma casa da sua aldeia, na Zona Sul de São Paulo. Tinha acabado de passar o dia na roça, e se acomodou ali para atender a ligação de vídeo em que gravamos sua entrevista para o último episódio do podcast Zum-Zum no Vera. Era a primeira semana de fevereiro de 2025 e, poucos dias antes, uma tempestade de verão havia atingido a cidade, causando alagamentos e uma morte.

“É impressionante de pensar que a gente que está na beira da Billings, a gente que está no meio de cachoeiras, de nascentes e a gente não tem isso, não vivemos isso até hoje. E aí, de repente, no centro da civilização, onde só tem prédio, asfalto e tal, a presença do poder público tem juruá [não indígena] morrendo afogado. Isso não faz sentido para a gente”, disse ela.

A intensidade das chuvas é uma das consequências das mudanças climáticas que têm gerado eventos cada vez mais extremos em todas as partes do mundo. A principal causa são as alterações no ambiente provocadas pelo homem, com a extração contínua de recursos naturais e a produção de gases que alteram as dinâmicas da atmosfera.

O contexto tem causado alarde pelo mundo. Lideranças políticas se encontram em fóruns – como a COP 30, que acontecerá em novembro em Belém do Pará – para formular acordos sobre emissões de gás, investimento em fontes alternativas de energia, financiamento para a preservação do meio ambiente. Os combinados, quase sempre, não são cumpridos e a crise se agrava.

No meio do barulho, os povos indígenas brasileiros têm se posicionado de forma cada vez mais enfática: se os não indígenas tivessem ouvido os alertas que eles fazem há séculos, talvez não estivéssemos vivendo essa situação. Mas talvez ainda não seja tarde demais, contam lideranças como Jerá, Ailton Krenak, Daniel Munduruku, entre outros: se ouvirmos os povos originários e aprendermos com eles, talvez encontremos formas de adiar o fim do mundo.


Aprender com os indígenas

Jerá é educadora e liderança indígena, e uma das pessoas com as quais alunos e professores da Escola Vera Cruz têm estabelecido contato para incorporar a cultura, a literatura e a ciência indígena nas aulas. O trabalho faz parte da proposta de Educação para as Relações Étnico-Raciais da escola e, por isso, envolve um trabalho transversal com todos os membros da comunidade escolar.

Uma parte fundamental é a formação dos educadores e funcionários técnico-administrativos. Jerá, por exemplo, fez a abertura do ano letivo da escola, no final de janeiro. Antes disso, textos escritos por ela e o trabalho de recuperação de sementes ancestrais feito por ela já haviam sido discutidos entre diferentes grupos de professores da escola.

Foi a formação continuada dos professores que também possibilitou projetos como o implementado em 2024 nas turmas do 3º ano. Com o objetivo de desconstruir estereótipos e possibilitar que as crianças conhecessem a imensa diversidade de povos indígenas que vivem no Brasil, o time de professores fez um estudo aprofundado das diferentes etnias, suas culturas, seus idiomas e a maneira como veem o mundo. O estudo foi mediado por Paula Dellaquila, uma das professoras do 3º ano e coordenadora de Ciências Humanas. “Nós, enquanto grupo de professores, também precisamos nos aprofundar na pesquisa e no estudo sobre as etnias que as crianças estudaram. O trabalho envolveu uma visita a uma aldeia, mas antes de levarmos as crianças, nós mesmos fomos até lá como parte do nosso  estudo”, conta Paula. (Leia reportagem sobre esse projeto)

Como consequência do processo de formação e discussão, que acontece com todos os professores, em todas as unidades e em todos os segmentos, os saberes, as culturas e as ciências indígenas aparecem de maneira transversal no currículo: da literatura indígena apresentada na Educação Infantil, passando por discussões sobre a Astronomia Indígena nos anos finais do Ensino Fundamental, até reflexões sobre os impactos do racismo na Ciência feitas com o Ensino Médio.

Por meio da formação, a equipe tem a oportunidade de ampliar suas próprias referências literárias, artísticas e científicas. “Nossa perspectiva tem sido de não aprender sobre os grupos indígenas, mas aprender com eles”, reforça Débora Rana, coordenadora do 3º ao 5º ano. Assim, abrem espaço para que os próprios indígenas apresentem suas culturas e suas visões de mundo, uma perspectiva que – apesar de obrigatória por lei – ainda é exceção nas escolas brasileiras.


Uma conquista histórica

Abordar a história e cultura dos povos originários brasileiros é uma obrigação legal das escolas brasileiras, fruto de uma conquista histórica dos movimentos sociais liderados pelos diferentes povos indígenas.

Um dos principais marcos dessa história aconteceu durante a Assembleia Constituinte, em setembro de 1987, quando Ailton Krenak fez um discurso aos parlamentares. Krenak vestia terno e gravata quando entrou na Câmara dos Deputados, em 4 de setembro. Quando lhe foi dada a palavra, assumiu o púlpito. “Eu espero não agredir com a minha manifestação o protocolo desta casa”, ele diz, enquanto começa a espalhar, sobre o próprio rosto, uma tinta preta. Ele segue, com voz calma e olhos que brilham se enchendo de água. “Mas eu acredito que os senhores não poderão ficar omissos, os senhores não terão como ficar alheios a mais essa agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância do que significa ser um povo indígena”, ele prossegue.

O discurso de Krenak foi decisivo. Naquele momento, discutia-se uma nova Constituição Federal, após a ditadura militar. Os movimentos indígenas solicitaram a inclusão de um capítulo sobre os direitos dos povos originários, mas sua demanda foi recebida com hostilidade: grandes jornais, políticos e empresários viam as demandas indígenas como uma ameaça ao interesse nacional. “Povo indígena tem um jeito de pensar, tem um jeito de viver. Tem condições fundamentais para sua existência e para a manifestação da sua tradição, da sua vida e da sua cultura que não coloca em risco e nunca colocaram a existência sequer dos animais que vivem ao redor das áreas indígenas, quanto mais de outros seres humanos”, defendeu Krenak.

Após a fala de Krenak, como parte da articulação dos povos indígenas para influenciar a Assembleia Constituinte, as discussões tomaram um novo rumo. As demandas dos povos originários foram ouvidas e absorvidas, em parte, na Constituição promulgada em 1988. O novo documento mudava, finalmente, a maneira como o estado brasileiro enxergava os diferentes povos e abria o caminho para reivindicações que se iniciaram ali, e seguem até hoje.

No campo da Educação, dois esforços fundamentais se criaram. Por um lado, a Constituição reconheceu o direito indígena às suas línguas, culturas, tradições e modos de viver – assim como a seus territórios. Nas décadas que se seguiram, começou-se a construir e fortalecer a Educação Indígena, com a criação de escolas em que crianças e adultos indígenas pudessem ter acesso à educação em sua própria língua e, preferencialmente, com professores da sua própria comunidade. Por outro, iniciou-se a demanda para que as visões estereotipadas e equivocadas sobre os povos indígenas fossem desconstruídas junto a toda a sociedade brasileira, o que passava obrigatoriamente pela educação.

O caminho se abriu em 2003, quando foi aprovada a Lei 10.639, fruto de uma articulação de décadas dos Movimentos Negros. A lei e as Diretrizes Curriculares formadas a partir dela reconheceram a importância de se rever a maneira como os currículos e as práticas escolares foram construídos e mudar o foco: da tradição eurocêntrica que imperou até ali, para uma tradição que cada vez mais acolhesse e valorizasse outras perspectivas.

Em 2008, outro passo fundamental foi dado: a aprovação da Lei 11.645, que acrescentava à necessidade de abordar a história e cultura africana e afro-brasileira a obrigatoriedade do ensino dos mesmos elementos a respeito dos povos indígenas.

Com a aprovação da lei e a publicação de Diretrizes para a sua implementação, definiu-se melhor como o tema deveria ser abordado pelas escolas. Entre as propostas, está o reconhecimento da diversidade dos povos indígenas no Brasil – são, hoje, cerca de 278 povos diferentes –, com suas culturas, idiomas, tradições, literaturas etc. Além disso, as diretrizes destacam a importância de que estudantes e professores possam aprender diretamente com lideranças indígenas, como tem acontecido nos diversos projetos que acontecem no Vera.

A formação de professores e a criação de projetos que promovem o contato dos estudantes com a riqueza das produções científicas e culturais dos povos originários têm levado os estudantes e educadores a construir uma visão sobre esses povos muito diferente da de gerações anteriores. “O desconforto com a narrativa de que os colonizadores chegaram no Brasil e o ‘descobriram’ já existia há muito tempo entre os educadores, mas foi só por meio do estudo e das provocações que conseguimos transformar esse desconforto em uma nova forma de narrar a história do país e a participação dos povos indígenas, que sempre estiveram presentes aqui”, lembra Emilian Cunha, conhecida como Dami, orientadora do 4º ano.

Como resultado, uma visão mais justa e verdadeira do que significa ser indígena no Brasil hoje. Sai a ideia de um povo preso no passado e a noção de que sua produção cultural cria “lendas” ou “folclore”. E passa a fazer parte do repertório das turmas a visão de populações extremamente diversas, frequentemente em transformação e que produzem continuamente saberes, ciência, literatura e visões de mundo que, se soubermos escutar, podem mudar drasticamente o futuro do nosso planeta.

Para saber mais

Episódio “Arqueologia do futuro”, do podcast Rádio Novelo Apresenta.

Livro Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak, 104 p., Ed. Companhia das Letras, R$49,90.

Artigo “Tornar-se selvagem”, de Jerá Guarani, publicado na revista Piseagrama.

Parecer CNE/CEB 14/2015, que define Diretrizes para a implementação da história e das culturas dos povos indígena na Educação Básica.

Nota Técnica sobre a Lei 11.645/08 – Ensino de História e Cultura Indígena, elaborada por Instituto Socioambiental, Instituto Alana e Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena (FNEEI).

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.