Com contos indígenas e podcasts, a turma aprendeu sobre oralidade

Gabriely Araújo

A turma do 1º ano criou um podcast com um conto indígena.

“Em tempos antigos, os guarani não sabiam acender fogo. Na verdade, eles apenas sabiam que existia o fogo, mas comiam alimentos crus, pois o fogo estava na mão dos urubus […]”. Esse é um trecho do conto guarani “O roubo do fogo”, de Daniel Munduruku, que foi parte de um podcast feito pelos alunos do 1º ano.

O podcast é resultado de um extenso processo de aprendizagem e descobertas sobre os povos indígenas que aconteceu ao longo de 2024 e foi liderado pelas professoras Silvia Mendonça e Thainná Isys, junto à orientadora Helena Nobrega. Os alunos pesquisaram sobre alguns povos indígenas, suas culturas, seus hábitos e refletiram sobre o que significa ser indígena atualmente. No segundo semestre, essa investigação se aprofundou e resultou na produção de uma reescrita de um conto de origem guarani. “Eles conheceram personagens encantados, rios, florestas, mistérios e aventuras que trouxeram aspectos centrais da cultura desses povos, dando visibilidade às suas crenças e valores”, contam as professoras em relato sobre as atividades.

Parte do processo investigativo aconteceu pela leitura de obras literárias compostas por autores indígenas como Daniel Munduruku e Eliane Potiguara. Além das obras escritas, as professoras também apresentaram narrativas em áudio. Assim, a turma pôde valorizar a oralidade, importante habilidade e uma das principais formas como povos indígenas compartilham seus conhecimentos e saberes entre gerações.

Da oralidade indígena, veio a ideia de produzir um podcast, e uma importante inspiração foi o Pavulagem, criado pelo jornalista Maickson Serrão. Nascido no Pará, Maickson se identifica como ribeirinho e indígena do povo Tupinambá e, no seu podcast, apresenta histórias e lendas sobre os seres que habitam a floresta amazônica.

Com o apoio do pai da aluna Antonia, José Orenstein, um dos produtores do Pavulagem, as crianças tiveram um encontro com Maickson Serrão, por videochamada. Antes da ligação, as crianças se preparam: investigaram sobre a Vila Boim (onde Maick nasceu), se interessaram por sua biografia, exploraram a fundo o podcast feito por ele e elaboraram perguntas que pudessem tanto ajudá-las a produzir seu próprio programa como dialogar com as histórias de vida do entrevistado.

Depois desse encontro, elas registraram as informações trocando sobre o que ouviram de Serrão. “A preparação e a conversa com Maick deram novos indícios para as crianças entenderem um pouco mais como vivem os povos indígenas na contemporaneidade. Fiquei orgulhosa deles terem quebrado estereótipos e generalizações. Por exemplo, que há diversas culturas indígenas, e não uma só. E que Maick é de um desses povos, os Tupinambá”, afirma a professora Silvia Mendonça.

A turma tomou nota dos pontos trazidos por Maickson. Depois, durante uma discussão coletiva, puderam trocar impressões e consolidar aprendizagens.

Produção e gravação

Ao longo do processo, as crianças refletiram sobre os aspectos envolvidos na produção, discutiram questões técnicas, elaboraram hipóteses e foram atrás das respostas com Maick e José. Em um dos momentos do projeto, as professoras perguntaram: “Como se faz um podcast?”. Na voz das crianças, algumas hipóteses que foram discutidas com os convidados ressoaram, como: “Primeiro, antes de sair contando, tem que saber a história”, disse Antonia. “Tem que treinar antes”, sugeriu Cecília. Nesse momento, surgiram discussões sobre o gênero roteiro. “Será que o roteiro ajuda a treinar? O que é um roteiro?”, perguntaram as professoras. Laura fez uma comparação interessante: “Roteiro é tipo rotina”, disse ela se referindo à lista em que a turma escreve as atividades que serão realizadas ao longo do dia.

A turma chegou à conclusão de que um roteiro é uma forma de organizar o conteúdo tratado no podcast e construiu, coletivamente, o roteiro do episódio.

Coletivamente, os estudantes e as professoras tomaram decisões como: o nome do programa, a trilha sonora e o próprio roteiro. “Foi muito especial fazer esse trabalho e possibilitar que as crianças se colocassem como produtoras de um podcast, buscando tomar decisões coletivas. Isso deu muita verdade e sentido para o trabalho das crianças”, relembra a professora Silvia.

Por meio de uma votação, o grupo escolheu o conto guarani “O roubo do fogo”, retirado do livro Contos indígenas brasileiros, de Daniel Munduruku, para ser apresentado nesse formato. A partir do roteiro pronto, cada aluno pensou em como gostaria de participar do episódio, quais seriam suas falas e se preparou para a tarefa. Para ajudar com a produção, gravação, montagem e edição do podcast, o grupo contou com a parceria da professora especialista em documentação e audiovisual, Camila Campello. A professora Thainná reforça a importância de se abordar culturas e histórias que não estavam presentes no currículo: “Quando a gente assume esse papel de tornar visível as histórias que foram invisibilizadas, de romper com o currículo eurocentrado e trabalhar em uma perspectiva decolonial, a gente precisa olhar para os povos indígenas e para as suas muitas histórias e culturas”.

A estreia do podcast, que misturou a narração das professoras e a fala dos estudantes, foi no fliVerinha, festa literária, na qual os alunos compartilharam com suas famílias as suas experiências com a leitura. Após a apresentação, os ouvintes comentaram sobre suas percepções, e, junto com as crianças, esses registros viraram um grande memorial sobre essa jornada.


Thainná Isys

Professora

“Quando a gente assume esse papel de tornar visível as histórias que foram invisibilizadas, de romper com o currículo eurocentrado e trabalhar em uma perspectiva decolonial, a gente precisa olhar para os povos indígenas e para as suas muitas histórias e culturas.

Nesse processo, eu olho para minha própria história que também foi invisibilizada. Apresentar outras visões de mundo e outras narrativas também diz respeito ao meu caminho de formação e à minha identidade. Hoje me reconheço como uma mulher não branca de origem afro-indígena, mas continuo buscando conhecer mais sobre minha ancestralidade. O apagamento histórico da população afro-brasileira e indígena nos coloca num lugar indefinido e pesquisar sobre as origens que nos compõe faz parte do meu fazer na educação e do meu posicionamento político.

Ao conduzir essa pesquisa com as crianças em parceria com a Silvia, me senti vista e contemplada na minha subjetividade por ser atravessada pelas culturas indígenas. Entendo que é no miúdo da sala de aula que a gente valida a nossa intenção de contemplar um currículo para as relações étnico-raciais. Nesse caminho eu sinto que dei voz às mulheres que vieram antes de mim e também pude compor com outras vozes contemporâneas, como quando ouvi Maickson Serrão.

Existe uma febre ancestral, como diria Daniel Munduruku, que, quando trabalho com as narrativas indígenas, reascende e me faz sentir viva. Isso sustenta minha prática e o desejo de que as crianças se fortaleçam, que todas reconheçam o valor da pluralidade, outros jeitos de ser e estar no mundo.”

Para saber mais

Podcast Pavulagem, de Maickson Serrão.

Livro Contos indígenas brasileiros, de Daniel Munduruku, 64p., Grupo Editorial Global, R$ 69,00.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.