Por Mariana Gonzalez
Numa manhã quente de sábado, mais de 400 pessoas assistiam totalmente concentradas à fala de Edson Lopes Cardoso. “O racismo é parte constitutiva do que somos e do que nos formou”, ponderou ele, uma das principais lideranças dos movimentos negros do Brasil. Ele seguiu: “Por isso, é preciso que os esforços de combate ao racismo dentro da escola levem em conta que o racismo opera em toda a sociedade fora dos muros da escola”.
O grupo que ouvia Edson atentamente era composto pela comunidade da Escola Vera Cruz. Pais, alunos, professores, gestores e a equipe técnico-administrativa decidiram dedicar esse sábado de verão para avaliar e discutir o Projeto para Relações Étnico-Raciais da escola. “A avaliação participativa é uma parte importante do projeto”, diz Regina Scarpa, diretora pedagógica do Vera. Os encontros acontecem a cada dois anos, e seguem a metodologia dos Indicadores de Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola, criados pela Ação Educativa.

Edson foi convidado para acompanhar a manhã de atividades e fazer seu encerramento, propondo reflexões sobre o projeto à comunidade do Vera. Doutor em Educação, Edson é reconhecido como uma das mais importantes lideranças dos movimentos negros no Brasil. Militante do Movimento Negro Unificado (MNU) desde a década de 1980, é um importante pensador sobres os impactos do racismo na educação. “Contar com a presença do Edson, assim como de outros líderes dos movimentos negros e indígenas que sempre participam de nossos encontros, é fundamental para aprofundar nosso debate e permitir que o projeto siga avançando”, afirma Regina.
Antes da sua fala de encerramento, Edson visitou algumas das 14 diferentes salas onde os membros da comunidade escolar discutiram as sete dimensões propostas pela metodologia de avaliação, entre elas as de proposta político-pedagógica, atuação dos profissionais de educação, gestão democrática e recursos didáticos.
Primeiro, em cada uma das salas, um professor ou professora responsável apresentou o que foi feito a partir dos planos de ação estabelecidos nas duas avaliações anteriores, ocorridas em 2021 e 2022. Depois, apresentaram perguntas norteadoras para cada indicador – as quais questionavam aos participantes, por exemplo, se as atividades propostas em sala reforçam a autoestima de alunos negros ou se o corpo administrativo da escola recebe uma formação antirracista.
Pais, gestores, professores e alguns alunos adolescentes presentes discutiram as respostas e classificaram cada indicador com cores, para entender se ele está ou não sendo aplicado, se tem atingido seus objetivos e se merece mais atenção. Durante essas discussões, os presentes trouxeram relatos sobre suas vivências, compartilhando reflexões importantes e discutindo casos que foram positivos para as relações raciais da comunidade escolar, bem como exemplos que merecem mais atenção. Uma mãe comentou, por exemplo, que seu filho, uma criança branca, apresentou dúvidas sobre sua autodeclaração racial quando a turma discutiu em sala de aula o censo do IBGE – segundo ela, a dúvida do menino levou a conversas importantes sobre colorismo.


Em outra sala, enquanto apresentava os avanços no indicador de propostas currículo-pedagógicas, a professora Vaniery Santos apresentou um vídeo em que duas mães – uma de uma criança indígena e outra de uma criança moçambicana – contam como as propostas pedagógicas ajudaram na inclusão de suas crianças na comunidade escolar. A primeira contou que, quando sua filha veio de outra escola para o Vera, sentia dificuldade em falar abertamente sobre suas origens indígenas, mas que depois de algumas atividades culturais com sua nova turma, em que a cultura indígena foi ressaltada e valorizada, passou a se sentir mais confortável.
Em outra sala, pais e professores discutiam profundamente como lidar com casos de racismo entre alunos – tema que requer a criação de protocolos e a atuação de toda a comunidade escolar. Numa terceira, debatiam como brincadeiras infantis podem reforçar estereótipos de gênero e raça.
“A presença do Edson Cardoso, como um intelectual de referência no campo das relações raciais no Brasil, nos ajuda a qualificar o processo de análise do que temos vivido como comunidade”, afirma Regina Scarpa.
Nas discussões, foi possível ver o profundo comprometimento de toda a comunidade com o projeto: adultos e jovens fizeram reflexões profundas sobre o projeto, suas conquistas e os avanços que ainda precisam ser feitos, dentro e fora da escola. Nas conversas, quase sempre os grupos esbarravam no mesmo desafio: a dificuldade de promover um projeto de educação antirracista numa sociedade que ainda é profundamente marcada pelo racismo estrutural.
A fala de encerramento do professor Edson acolheu essa aflição: seria impossível que o Vera formasse uma “ilha”, completamente isolado do que acontece fora da escola, o que não invalida a importância do projeto feito pela escola. “Esse tipo de vivência é transformadora para nossas vidas, para a escola e para o Brasil. Se o país fizesse discussões como essas há 200 anos, o Brasil seria outro”, disse.
