Um jogo para entender a ciência da cor da pele

Estudando genética, o 9º ano discutiu conceitos como raça, ciência e pseudociência

Reportagem: Gabriely Araújo

Com base em jogo, alunos do 9º ano estudaram a ciência das diferentes cores de pele e compreenderam como o conceito de raça não tem base científica.

Em uma sala de aula do 9º ano, o que começou como um jogo de cartas se transformou em uma profunda reflexão sobre genética, diversidade racial e de gênero. Por meio da atividade “Herdando cores”, estudantes mergulham na ciência da hereditariedade para entender como a ciência refuta qualquer base para o racismo.

A iniciativa, criada pelas professoras Joana Mello Ribeiro Ruocco e Maria Silvia Abrão, nasceu da necessidade de conectar o conteúdo de Biologia com discussões urgentes e presentes na sociedade. O currículo do 9º ano já abordava a sexualidade, utilizando a genética para demonstrar que a biologia codifica a diversidade, em uma tentativa de desconstruir falas homofóbicas e transfóbicas. Conforme explica a professora Joana, o objetivo era mostrar que, se os corpos não são biologicamente apenas masculinos ou femininos, a sociedade também não deveria impor essa rigidez.

Essa reflexão também permeou a diversidade racial, e o ponto de virada aconteceu logo após uma aula sobre diversidade genética e uma palestra com o jornalista Edson Lopes Cardoso, voltada para a comunidade escolar, pais e funcionários do Vera, que abordou a relação entre tons de pele e a negritude. “Percebemos que precisávamos fazer a mesma discussão que a gente faz sobre sexualidade também em relação à tonalidade de pele”, relata Joana. A urgência era clara, e a professora inicialmente planejou uma ficha de exercícios para a aula seguinte. No entanto, sua colega, Maria Silvia, insistiu em uma abordagem mais envolvente: “Não, tem que envolver mais, tem que ser um jogo”, relembra.


A biologia em jogo

A partir desse desafio, as educadoras desenvolveram “Herdando cores”, uma atividade que ocupou duas aulas: uma para o jogo e outra para a discussão. Divididos em grupos de oito, os alunos se tornam a primeira geração de uma árvore genealógica. Cada estudante recebeu um conjunto de cartas que representou os genes que determinam a produção de melanina e o albinismo.

O processo era totalmente participativo. A cada rodada, os alunos sorteavam “parcerias” para formar pares reprodutivos. Eles, então, separavam suas cartas de genes para simular a formação de gametas e os combinavam para gerar os descendentes da geração seguinte. O processo se repetia, e, a cada nova geração, a árvore genealógica ganhava mais cores e complexidade. “Foi criado um movimento de circulação para que conseguissem ter essa mistura genética e que eles pudessem olhar o tamanho da variabilidade que é possível”, explica Maria Silvia.

O processo é uma simulação ativa da herança genética:

  • Genes e cromossomos: os alunos recebem cartas de cores diferentes que simbolizam os cromossomos e os genes. As cartas verdes e rosas representam as variantes dos genes A e B, que codificam uma maior (A, B) ou menor (a, b) produção de melanina. As cartas amarelas representam o gene
     C, que em sua forma recessiva (cc) causa albinismo.
  • Construindo gerações: os estudantes definem o genótipo e o fenótipo (a cor da pele) de seu “indivíduo” na primeira geração, colorindo um círculo em uma folha de árvore genealógica com lápis de cor específicos para tons de pele.
  • Cruzamentos e diversidade: através de cartas de “parceria”, os alunos formam pares reprodutivos. Eles separam suas cartas de genes para formar “gametas” e os combinam para criar os descendentes da geração seguinte. O processo é repetido por quatro gerações.
O jogo e a discussão sobre genética mostraram que há uma diversidade de cores de pele muito maior do que as atuais classificações de raças.

Raça em discussão

A segunda aula foi dedicada à análise dos resultados. Ao observarem as árvores genealógicas que preencheram, repletas de diferentes tons de pele surgidos a partir de apenas oito indivíduos iniciais, os alunos visualizaram a diversidade genética. “A primeira coisa que eu perguntei foi: ‘Tá, o que que vocês veem a partir desse papelzinho?'”, conta Joana. A resposta veio em uníssono da turma: “diversidade”.

Foi a faísca para a discussão principal. Ao verem com os próprios olhos como a genética gera uma imensa variedade de tons de pele de forma natural, os estudantes puderam compreender de forma concreta que a hierarquia de valor que a sociedade impõe a essas cores não tem qualquer fundamento biológico. São, na verdade, construções sociais historicamente determinadas e enraizadas em processos de dominação como o colonialismo.

A partir dessa constatação visual e coletiva, a conversa fluiu para a desconstrução de ideias racistas. As professoras explicaram a diferença entre ciência e pseudociência, mostrando como argumentos preconceituosos frequentemente distorcem dados científicos para justificar uma estrutura social de opressão.

A atividade possibilitou aos alunos compreenderem que argumentos racistas que tentam usar a biologia como justificativa partem de uma conclusão predefinida para manter uma estrutura de poder, o que inverte o processo científico. “Toda vez que a gente tem uma conclusão pseudocientífica que defende a manutenção de uma estrutura social,  muito provavelmente essa conclusão não veio de um processo científico”, conclui Joana.

“Herdando cores” se revelou, assim, mais do que uma simples atividade sobre genética; é uma ferramenta alinhada a uma perspectiva decolonial de educação. Ao questionar as estruturas sociais racistas e patriarcais, o projeto promove o pensamento crítico e uma postura ética diante das desigualdades.

Para as professoras, essa abordagem é fundamental. “A gente tem entendido que esta estrutura social, que é patriarcal, racista e heteronormativa, é uma herança dessa estrutura colonial”, explica Joana. O jogo se torna, assim, um caminho para o ensino de Ciências assumir um papel ativo na formação de uma sociedade mais justa e igualitária, mostrando como a educação pode e deve ser um agente no enfrentamento do racismo.

Para saber mais

Livro | Nada os trará de volta, de Edson Lopes Cardoso.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.