Relato de prática: como o livro Óculos de cor fez o 5º ano pensar e agir sobre as relações étnico-raciais

Por Paula Takada (professora polivalente) e Maria Eneida Fiuza (orientadora)

O livro de Lilia Schwarcz serviu como ponto de partida para discussões sobre branquitude, racismo e as relações interpessoais.

“Fazia tempo que os pais, a direção e os professores estavam empenhados em mudar o perfil da escola. A ideia era que, por mais que fosse uma escola particular e paga, ela precisaria se engajar numa proposta mais cidadã e inclusiva – ‘antirracista’, conforme explicava a diretora, no sentido de contar com alunos vindos de diferentes realidades sociais e culturais”.

Não, o trecho acima não foi retirado de nenhum documento do Vera. Ele está na página 29 do livro Óculos de cor: ver e não enxergar, uma narrativa ficcional escrita por Lilia Moritz Schwarcz, na qual Alvo, um menino branco, estudante de uma escola particular, vivencia a chegada de colegas negras, negros e indígenas e, com isso, passa a ver o mundo com outros olhos.

Como buscávamos uma leitura que provocasse conversas, pensamentos e ações sobre as relações raciais, um tema presente no cotidiano da turma, propusemos ao 5º ano A a leitura, em sala de aula, desse livro, que reflete parte da nossa realidade.

E funcionou. A princípio, boa parte do grupo criticou pesadamente a postura do personagem Alvo: um garoto alienado, fechado em um mundinho que ele considerava perfeito e cercado de pessoas brancas – Clara (a irmã), Neves (o pai), Branca (a mãe) e Cândido (o cachorro).

Avançando um pouco mais na história, os alunos e as alunas passaram a conhecer, juntamente com Alvo, um pouco do dia a dia de Ebony: uma garota negra, recém-chegada à escola, que se desloca de ônibus até a periferia, onde vive cercada de pessoas pretas – Akin (o pai), Abia (a mãe) e Malaika (a avó).

As realidades dos dois personagens são diferentes, são vivências distintas que se somam e que fazem do mundo um lugar maior, um lugar onde o que é normal para um pode não ser normal para o outro. Essa reflexão, que convoca as crianças a saírem de seu lugar e olharem o outro de modo a compreendê-lo, promove relações mais empáticas e inclusivas.

Solicitamos, então, um registro escrito sobre as impressões parciais dos alunos e suas expectativas. Algumas das reflexões trazidas pela turma foram:

“Eu me identifico um pouco com o Alvo, já que minha família inteira é branca igual à dele.” – Helena Carvalho Araujo Puga

“Estou achando o livro bem legal porque ensina a ser antirracista. Não me identifico com os personagens porque eu nunca sofri racismo ou bullying.” – Gael Campello Junqueira

“Minha expectativa é que Ebony e Alvo se juntem e estourem as bolhas das outras pessoas.” – Anita Dornelio Pinheiro

A cada sessão de leitura em sala, seguiram-se momentos de troca e debate entre os leitores. Nessas situações, os alunos se sentiram seguros para contar casos e tirar dúvidas sobre esse tema delicado que é o racismo, com perguntas que nem sempre a professora soube responder na hora.

Como educadoras, observar a convivência entre as nossas crianças, as desavenças e os conflitos cotidianos sob essa perspectiva nos fez redimensionar nosso olhar e nossa escuta, nos convocando, como coagentes dessas cenas, a atingir camadas mais complexas das relações que se estabeleciam na turma.

A leitura extrapolou a sala de aula e chegou às casas dos alunos. Alguns familiares se interessaram, leram o livro e conversaram com as crianças sobre as vivências de Ebony e Alvo, o que os levou a discutirem também suas próprias vivências nos diferentes espaços por onde circulam. Ampliaram, assim, nosso trabalho de letramento racial que só pode ser efetivo dessa forma: por meio da parceria entre as famílias e a escola.

Ao fim da leitura da narrativa principal e de alguns termos do glossário que compõe o livro, convocamos os alunos a pensar ações para melhorar as relações étnico-raciais no Vera e surgiram muitas ideias – de visitas aos bairros dos colegas, como acontece no livro, à barraca dos tons de pele que seria instalada no pátio para as pessoas declararem sua cor.

Decidimos começar por uma pesquisa quantitativa, nos moldes do Censo do IBGE, para conhecer a composição racial do nosso segmento escolar. Coletivamente, definimos a população a ser pesquisada (estudantes, professores e funcionários do 3º ao 5º ano) e o instrumento de coleta de informações (um questionário de múltipla escolha). No segundo semestre, os dados serão tabulados nas aulas de Matemática, e os resultados da pesquisa serão comunicados à comunidade do Vera.

 A leitura de Óculos de cor agora será estendida às demais turmas do 5º ano, aprovada e recomendada pelo grupo do 5º ano A:

“Na minha opinião, o livro é bem forte em relação ao racismo estrutural. A branquitude não é um assunto fácil, o racismo, então, nem se fala. E fico triste de saber que, no passado, negros eram escravizados e as consequências disso fazem parte da nossa realidade até os dias de hoje.” – Heloísa Sacramento Gomes 

“Eu gostei demais do livro. A autora fala sobre o fim do racismo como uma ‘utopia afetiva’ (uma coisa que você gostaria que fosse real, mas não é), e eu indico para vocês, leitores.” – Bernardo Bortolato Gouvêa 

Observar nossas crianças apropriadas desse vocabulário, compreendendo a profundidade de cada termo, e aliadas nessa justa luta social nos aponta que a escolha por esse livro não foi apenas adequada, mas foi também necessária para disparar reflexões e promover ações formadoras e transformadoras em cada subjetividade. Reafirmamos assim também o nosso compromisso com essa pauta, com essa questão socialmente viva e pulsante. Com as crianças, com as famílias, com a sociedade.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.