Wellington Soares
Nas unidades da Escola Vera Cruz, é comum encontrar rodas de conversa ou aulas onde as relações étnico-raciais estão em debate. O tema mobiliza toda a comunidade escolar. “As discussões estão presentes no Comitê da Diversidade Racial, no Grupo Guardião, no Grupo Makota Valdina — dos funcionários técnico-administrativos —, entre a Direção, coordenadores, professores, e estudantes, como no coletivo feminista, no grêmio estudantil e no Grupo Guardião das Diferenças e da Equidade, formado por alunos”, relata Regina Scarpa, diretora pedagógica do Vera.
A intensa mobilização é resultado do Projeto de Educação para as Relações Étnico-Raciais implementado na Escola. Esse projeto nasceu do compromisso de toda a comunidade e também responde a uma demanda legal: a Lei Federal 10.639, vigente desde 2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira. A professora Ana Lúcia Silva e Souza, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), afirma que, ao modificar a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), a Lei 10.639 propõe uma nova postura ao país: “Estamos falando de uma mudança de mentalidade em relação à questão racial no Brasil, e de uma instituição responsável por abordar essa questão”.
A Lei 10.639 apresenta quatro tópicos centrais para o ensino de história e cultura afro-brasileira: história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional. A incorporação desses conteúdos já acontece no Vera desde a aprovação da lei e foi o primeiro passo para a transformação do projeto da Escola.
Mas o projeto vai muito além dessa inclusão de conteúdos, e segue as definições das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNs). “É preciso ter clareza de que o Art. 26A, acrescido à Lei 9.394/1996, provoca bem mais do que a inclusão de novos conteúdos; exige que se repensem relações étnico-raciais, sociais, pedagógicas, procedimentos de ensino, condições oferecidas para aprendizagem e objetivos tácitos e explícitos da educação oferecida pelas escolas”, afirma o documento do Conselho Nacional de Educação.
A opção do Vera foi por estabelecer um projeto transformativo, que estivesse incorporado em todas as dimensões da Escola. É comum que as instituições de ensino, sobretudo particulares, sigam por outros caminhos. Muitos projetos se baseiam em uma perspectiva com viés assistencialista, apenas com o fornecimento de bolsas de estudo. Outros apostam também na inclusão, encontrando maneiras de fortalecer os sujeitos atraídos pelas bolsas para que eles permaneçam na instituição.
A perspectiva transformativa, por outro lado, altera a própria identidade da escola. Nessa perspectiva, um aspecto central é a reflexão de toda a comunidade sobre o racismo: os sujeitos negros e indígenas deixam de ser os únicos responsáveis por refletir sobre o tema e a branquitude também entra em discussão. “O racismo não é problema dos negros; é problema dos brancos. A luta dos negros é pela sobrevivência física e simbólica”, conclui Ednéia Gonçalves, coordenadora executiva ajunta da ONG Ação Educativa, em encontro que teve com a comunidade do Vera.
As ações afirmativas, que garantem que mais pessoas negras possam ter acesso à escola, continuam acontecendo, mas vão além das bolsas de estudo. “Parte importante também vem na contratação de funcionários, educadores e lideranças negras para compor o quadro do Vera”, destaca Regina Scarpa, diretora pedagógica. Com uma composição diferente e uma comunidade mobilizada, a Escola encara como seu objetivo colocar a educação de crianças e adolescentes a serviço da superação do racismo estrutural.
Avaliando indicadores para avançar no projeto
Promover uma transformação desse tamanho não é simples e foi fundamental o Vera se apoiar no conhecimento construído por outras instituições desde a aprovação da Lei 10.639. Além das DCN, também usou como referência materiais elaborados pela Ação Educativa. O Guia Metodológico eos Indicadores de Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola, atualizados em 2023, oferecem orientações para o desenvolvimento de ações educativas (acesse os materiais para Ensino Fundamental e Educação Infantil).
No Vera, o Grupo Guardião lidera a aplicação dessas diretrizes, promovendo debates comunitários com base nas avaliações institucionais realizadas. Um ponto importante dessas discussões é que o antirracismo deve ser visto como ação, não como sentimento. “O antirracismo é ação, uma ação a partir do reconhecimento do racismo, do quanto ele é estrutural e de como suas manifestações institucionais estão próximas. Esse reconhecimento impulsiona mudança”, destacou Ednéia Gonçalves.
A metodologia de avaliação proposta inclui sete dimensões a serem observadas:
- Atitudes e relacionamentos;
- Currículo e proposta político-pedagógica;
- Recursos didáticos e paradidáticos;
- Acesso, permanência e sucesso na escola;
- A atuação dos profissionais de educação;
- Gestão democrática e participação; e
- Para além da escola: a relação com o território.
Com base nessas avaliações, vem sendo possível desenvolver planos de ação coletivos, com a participação de todos os membros da comunidade escolar.
Ações coletivas
No Vera, diferentes grupos se organizam com dois grandes objetivos: formação e planejamento de ações. Coletivos como a Frente Antirracista da Organização de Famílias e o Grupo Makota Valdina, dos funcionários técnico-administrativos, promovem encontros, grupos de leitura e passeios culturais, buscando aprofundar o conhecimento sobre os temas da Lei 10.639. Para os educadores, a formação antirracista é parte da rotina, envolvendo até convidados externos, como os professores da EMEI Professora Ana Maria Poppovic, que participam de atividades na Unidade Vila Ipojuca.
“A construção de uma sociedade antirracista levará anos”, afirma a aluna do 8º ano Luana Campello, que também participa do Grupo Guardião da Diferença e Equidade. “O fato de a escola ser antirracista não elimina o racismo, pois ele está embrenhado na sociedade.” Seguir as diretrizes das DCNs, mesmo com as recomendações presentes nos documentos, não garante o fim do racismo. “O letramento racial é permanente, contínuo. Não se esgota em ler todos os livros que a Folha indicou como clássicos da literatura antirracista, que não se esgota nas peças antirracistas que circulam, que não se esgota em ter amigos e amigas negras”, destacou Jaqueline Conceição, pedagoga, doutoranda e CEO do Coletivo Dijeje, durante encontro realizado neste ano no Vera.
É fundamental reconhecer que a reeducação das relações étnico-raciais é um processo longo, que exige esforço tanto das escolas quanto da sociedade na qual elas estão inseridas. Para enfrentar o racismo, um dos primeiros passos tomados pelo Vera foi reconhecer que era necessário deixar de silenciar sobre o tema. Desde o início do projeto antirracista, a Escola definiu a importância de identificar esses casos e nomeá-los, passo importante para pensar nas intervenções para lidar com eles.
Protocolos institucionais para enfrentar casos de racismo são ferramentas importantes nesse caminho. A Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (PNEERQ), anunciada em 2024 pelo MEC, prevê a criação de tais protocolos, mas as escolas também podem desenvolver suas próprias medidas, como no caso do Vera.
A professora Ana Lúcia defende que os protocolos considerem principalmente o foco educativo. “Não pode ser uma chave punitiva somente da expulsão”, destaca. O protocolo para atuação em casos de racismo e de discriminação racial do Vera está em constante processo de revisão colaborativa, que tem envolvido representantes dos diferentes grupos que formam a comunidade escolar. O foco é pensar em medidas com foco educativo e de reflexão, fazendo com que as crianças e adolescentes reflitam sobre a gravidade dos seus atos, o que também envolve a aplicação de sanções e reparações. Para casos graves de reincidência, há a possibilidade de transferência compulsória.
O racismo enraizado na sociedade criou estruturas e instituições racistas. Quando uma escola se torna antirracista, ela vê como seu objetivo formar pessoas que promoverão transformações em outras instituições e na sociedade como um todo. O caminho será longo, e até lá é preciso seguirmos juntos e vigilantes.