No yoga e na capoeira, uma reflexão sobre movimento e cultura

Perguntas levantadas pelas crianças serviram como base para um processo que envolveu experimentação corporal e reflexão sobre essas duas práticas

Reportagem: Nairim Bernado

“Carol, o yoga foi veio da Índia?”. Ao ouvir essa pergunta, a professora respondeu que existem muitas dúvidas sobre onde exatamente surgiu a prática e que muitas pessoas acreditam que os primeiros praticantes eram, na verdade, africanos.

Essa e outras perguntas acompanharam as práticas de duas modalidades, yoga, liderada pela professora Caroline Rosé, e capoeira, liderada pelo professor Bruno Soares. Nas duas modalidades, os educadores propuseram atividades práticas e lúdicas que, além de desenvolver as habilidades físico-motoras das crianças, também abordaram como os corpos se expressam de acordo com a sociedade em que estão inseridos.

Nas práticas de yoga, antes de ouvir falar sobre o yoga africano, as crianças do nível 1, do G5 ao 2º ano, estavam conhecendo, experienciando e praticando posturas de yoga indiano (o mais conhecido e comumente praticado no Brasil e em muitos países do mundo). Em algumas aulas, Carol levou um conjunto de cartas que mostram figuras das posturas e seus nomes em português e em sânscrito (língua da Índia Antiga). Com base no interesse demonstrado pelos alunos, a professora começou a apresentar outras  informações sobre a cultura indiana, como geografia, filosofia e religião. As crianças perceberam que as posturas que elas vivenciavam com o corpo eram inspiradas na cultura da Índia.

Quando ficaram sabendo que não há consenso sobre a origem do yoga, as crianças ficaram curiosas. Diante disso, a professora embarcou com elas em algumas pesquisas. “Usamos principalmente o livro Introdução ao yoga kemética porque há pouquíssimos conteúdos sobre o yoga africano. No livro, observamos a parte teórica, algumas informações culturais e históricas e imagens das posturas”, conta a professora.

O yoga africano ou kemético é uma prática desenvolvida com base em posturas encontradas em murais, papiros e templos do Antigo Egito, região que era conhecida como Kemet. Ele foi sistematizado nos anos 1970 por estudiosos afro-americanos.

“Quando começamos a vivenciar o yoga africano, vimos que os faraós, os hieróglifos, as pirâmides, os deuses e a natureza inspiraram as posturas. A cultura, assim como no yoga tradicional indiano, se corporifica e podemos, portanto, também aprender através do corpo”, explica Carol.

Mergulhadas na compreensão da relação das posturas de yoga com a cultura de cada país, surgiu uma nova pergunta: “E se o yoga tivesse sido criado no Brasil?”. Diante dessa provocação, as crianças foram convidadas a citar e listar elementos característicos da cultura brasileira, para então explorar maneiras de representá-los com o próprio corpo. Surgiram, assim, as posturas do pão do queijo, do futebol, do brigadeiro, do cacau, do samba, entre outras.

“Ao saber que muitos yogas são possíveis e que não existe um modelo único, correto e original, o yoga passa também a ser entendido como campo de criação, onde cada corpo compõe a sua estética e a sua poética, permitindo que o corpo se expresse em diferentes gestos e diferentes tempos”, finaliza a professora.


Capoeira como elemento da motricidade brasileira

Uma outra prática também começou com uma pergunta: “Você sabe o que é capoeira?”. Com base nela, o professor Bruno Soares guiou um grupo de crianças curiosas de 4 a 11 anos de idade por um percurso investigativo pelos diversos elementos que compõem a capoeira.

“A capoeira pode ser compreendida como um fenômeno da cultura corporal, um legado do povo preto, que valoriza a identidade cultural afro-brasileira e contribui de forma significativa para a construção subjetiva das crianças”, afirma o professor.

No início, ele enfrentou certa resistência dos meninos mais velhos, que tinham a ideia de que a prática do movimento estaria ligada somente ao futebol. Com o tempo, a curiosidade e os elementos apresentados conseguiram envolver a todos, dos menores aos maiores. As crianças participaram de jogos e brincadeiras africanas e afrobrasileiras, viram imagens de capoeiristas de diferentes estados do Brasil e entenderam as influências africanas no esporte.

“A capoeira convocou o corpo brincante a vivenciar e repertoriar os jogos e brincadeiras desse universo, em um contexto permeado pela musicalidade e pela historicidade. Essa experiência possibilitou ao grupo refletir sobre os fundamentos e saberes ancestrais da capoeira, ampliando o olhar para o valor da interdependência, conceito civilizatório difundido na filosofia Ubuntu, que também está presente na circularidade comunitária da capoeira”, diz Bruno.

O foco do trabalho foi também desconstruir uma visão romântica que apresenta a capoeira apenas como dança, mostrando outros elementos que a aproximam do grupo das lutas, além de como ela se desenvolveu ao longo tempo — explorando os “floreios da capoeira contemporânea” — e aspectos rítmicos e musicais dessa prática. “A intencionalidade foi aproximar as crianças dessa manifestação cultural e esportiva, que surge como luta de resistência, ao mesmo tempo que as educamos para as relações étnico-raciais por meio da interação com o corpo em movimento”, diz o professor.

Além da via histórica e motora, as crianças também puderam se envolver com a capoeira através da sua musicalidade. Em roda, todos puderam produzir som com o corpo, inclusive batendo palmas, e tiveram contato com o berimbau e o pandeiro, além de cantar cantigas, vivendo experiências que mostram que a música também é um elemento central dessa cultura. Nos encontros, enquanto um grupo produzia movimentos, outro estava no cantinho da musicalização, e as crianças menores frequentemente recebiam ajuda das mais velhas.

Por fim, o professor destaca o que considera mais importante nessa oficina: “Um projeto de motricidade se torna esvaziado quando se limita apenas às competências motoras. Este é especial, porque é a capoeira que dá o tom, e nela encontro tudo o que preciso: música, literatura, história e autoconhecimento. Trabalhamos o corpo em sua integralidade, sem perder de vista as reflexões sobre raça e protagonismo”.

Para saber mais

Livro | Da cultura do corpo, de Jocimar Daolio.

Livro | Introdução ao yoga kemética,de Hernani Francisco da Silva e Dayse Gomis (UICLAP).

Documentário | Mestre Bimba, a capoeira iluminada.

Livro | Capoeira: um instrumento psicomotor para a cidadania, Gladson de Oliveira Silva e Vinicius Heine.

Livro | Poemas para ler com palmas, Edimilson de Almeida Pereira e Mauricio Negro.

Livro | Pastinha: o menino que virou mestre de capoeira, de José de Jesus Barreto e Cau Gomez.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.