Jogos e correspondência com o Quênia: ampliando saberes matemáticos e linguísticos

Nairim Bernardo

Quais jogos você jogava em sua infância? Você sabe qual é a origem deles? A história da humanidade é repleta de jogos e brincadeiras que, junto a outros elementos, fazem parte da cultura. Para as crianças, a ludicidade é um modo de aprender diferentes conceitos e habilidades enquanto se divertem. E, foi pensando nisso, que a professora Débora Freire e o professor Danilo Sarmento Santana apresentaram diferentes jogos para as crianças da turma do 2º ano do Ensino Fundamental da Escola Vera Cruz, em uma atividade que envolveu também as aulas da professora Adriana de Rezende, de Inglês.

Segundo Danilo, além dos conceitos matemáticos e de raciocínio lógico, o intuito do projeto com jogos também é trabalhar questões históricas, raciais e culturais por meio do enriquecimento do repertório das crianças. “Muitos jogos são conhecidos como europeus, mas, na verdade, têm outra origem. Também estudamos o xadrez e descobrimos que ele tem origem indiana, apesar de inicialmente pensarmos na Europa por conta das peças ligadas ao período feudal e medieval”, comenta o professor.

Entre os jogos, estava o shisima, jogo de tabuleiro de origem queniana que envolve estratégia, raciocínio, antecipação e conteúdos matemáticos de geometria e pensamento espacial. Em um tabuleiro composto por 9 círculos cujos elos de ligação constroem triângulos, dois jogadores disputam para ver quem consegue colocar três peças em linha reta primeiro. O alinhamento pode ser feito na horizontal, vertical ou diagonal. Para alcançar esse objetivo, é necessário pensar em uma sequência de jogadas, tentar antecipar as do adversário e impedi-lo de alinhar suas peças.

O shisima tem uma ligação com o jogo da velha, e as crianças o apelidaram de “pai do jogo da velha”. Do mesmo modo, também criaram uma maneira própria para se referir ao pensamento estratégico, “planos a, b, c”.

“As crianças sempre contam para as famílias o que estamos fazendo na escola. Cada uma fez seu tabuleiro de shisima e levou para casa. Através dessa troca, descobrimos que a família de uma aluna tem um amigo queniano chamado Adan, que conhecia o jogo, e decidimos estabelecer contato com ele”, comenta a professora Débora Freire.

Foi assim que o Quênia, até então completamente desconhecido para a turma, ganhou camadas além do fato de ser o lugar de origem do jogo. O país ganhou um lugar no mapa, indicado pelos professores em um globo terrestre, informações geográficas e culturais e o rosto de um de seus habitantes, já que Adan aceitou fazer uma chamada de vídeo com os estudantes (leia mais abaixo).


Intercâmbio cultural e aprendizagem afetiva

“Em uma primeira troca de mensagens, ele disse que conhecia o jogo como keram. Pesquisamos e encontramos regras diferentes, o que nos fez pensar se era o mesmo jogo ou não. Além das dúvidas sobre o jogo, estávamos com o globo terrestre, o mapa-múndi e começamos a pensar sobre a cultura, as pessoas e a comida queniana”, conta a professora Débora.

Alguns apontamentos feitos pelas crianças foram: “O globo é uma versão do nosso planeta” e “Continente é um lugar que tem não só um país, como a Rússia. É um lugar bem grande que tem vários países dentro dele”.

Para entender a origem dos diferentes jogos, a turma discutiu noções de geografia e se aprofundou na exploração do mapa-múndi e do globo terrestre.

Movidas pela necessidade de solucionar o mistério em torno dos jogos – shisima e keram são o mesmo jogo com nomes diferentes? – e pela curiosidade em torno de outra cultura, as crianças levantaram uma série de 18 perguntas a serem feitas para Adan. Os professores atuaram como escribas e organizaram as questões por escrito em uma lista. Segundo Débora, esse tipo de atividade é feito com diferentes gêneros textuais, quando o objetivo pedagógico não é direcionar o foco da criança para como grafar as palavras sozinha, mas direcioná-lo para o conteúdo do que querem dizer.

Entre as perguntas, estão as seguintes: o keram é um jogo para crianças, adolescentes ou adultos? Existe poesia no Quênia? Quais comidas típicas existem no Quênia? Você estuda Português na escola? A maioria das pessoas no Quênia são negras? Existem pessoas brancas aí? Para o momento da videochamada, a turma elaborou, com a professora de Inglês, maneiras de apresentar essas questões no outro idioma.

“O projeto todo se iniciou pelo jogo, aí veio a questão afetiva no encontro com o Adan e a aprendizagem se tornou pessoal-sujeito-cultural. Primeiro, elas pensaram na própria cultura para entender a cultura de lá, buscando estabelecer relações de comparação. Na conversa com Adan, quebramos estereótipos sobre a África, desmistificando algumas questões sobre diversidade. Esse aspecto humano nos surpreendeu e essa aproximação foi linda e encantadora. Eles ficaram apaixonados pelo Adan, que foi muito receptivo”, relembra Danilo. “Cada pergunta movimenta um milhão de coisas. Eu trabalho com esse jogo há muitos anos, pois o conheci na graduação com um professor que trabalha etnomatemática, e movimentei os meus saberes com as perguntas das crianças. Também foi a primeira vez que conversei com alguém do Quênia.”

Para Débora, o mais marcante do projeto com jogos também foi o lado humano da troca. “O dia da conversa foi bom para todo mundo. Fazemos muita pesquisa em livro e experiências, mas essa troca com outro ser humano é muito rica e boa para as crianças. Desenvolvemos aprendizados sobre conhecer o outro, se interessar pela troca e pela pesquisa através do elemento humano”, conta ela, que, junto a outros educadores, tem pensado em quais outras pessoas podem ser boas fontes de conhecimento para os estudantes.

Após a videochamada, a turma descobriu que shisima e keram são jogos diferentes e que Adan não sabia jogar o primeiro. Agradecidos pela conversa, resolveram enviar uma carta, desenhos, um tabuleiro de shisima e as regras do jogo (em inglês) para seu correspondente queniano.

Nesse momento, surgiram outras questões envolvendo geografia e conhecimentos da vida cotidiana: como enviar um objeto para outro continente? O que é destinatário e remetente? Qual é o endereço e o CEP da escola? Entre as hipóteses das crianças, estavam as seguintes: “Eu acho que a carta sai de São Paulo por um avião, aí ela chega num país, por exemplo, a Nigéria, aí eles mandam de avião para outro país, aí para outro, aí vai assim até chegar no Quênia” e “Eu acho que o Correios é que decide se vai ou de barco ou de avião, aí eles leem para quem a gente vai mandar a carta e entregam”.

Quando todos achavam que o projeto já estava finalizado, foram surpreendidos por um presente. Adan enviou uma carta resposta para a turma com um chaveiro do Quênia para cada criança do grupo.


O inglês para a troca de experiências

A função principal de aprender um segundo idioma é a comunicação. Através dela, podemos estabelecer relações pessoais ou profissionais com pessoas de diferentes países com os mais variados objetivos. Mas se engana quem acha que é preciso ser fluente em uma língua estrangeira para conversar com uma pessoa que não fala português. O trabalho desenvolvido pela professora de Inglês Adriana de Rezende, mostra como as crianças conseguiram se comunicar com Adan.

A conversa trouxe o idioma para a vida das crianças. “Eles veem os pais falando inglês nas reuniões, veem vídeos, e se encantam até quando me ouvem conversando com alguém em inglês. Agora, viram a necessidade de falar, eles mesmos, para que o projeto sobre os jogos acontecesse. O inglês deixou de ser uma língua só de filme, de música ou que só os outros falam”, comenta a professora.

A lista de perguntas que seriam feitas para Adan foi elaborada pelos estudantes com o auxílio dos professores Débora e Danilo. Adriana estudou o jogo shisima e leu a lista de perguntas que já estava pronta. A partir daí, começou a instigar as crianças a pensar em como apresentar esses questionamentos em inglês. Segundo a professora, a característica mais marcante desse processo são as muitas relações que elas fazem entre cognatos, lembranças, músicas e filmes que conhecem. Por exemplo, ao pensar em como se referir à escola, as crianças lembraram do filme High School Musical, já para a palavra “feliz”, a relação foi com a canção tradicional Happy birthday.  (Veja no vídeo abaixo os momentos de discussão da turma e a conversa com Adan.)

Chamou atenção da professora o interesse das crianças sobre uma pergunta que desejam fazer: “A maioria das pessoas no Quênia são negras?”. A tradução de negras seria black ou brown? “Como eu sou uma professora preta, já havíamos conversado sobre o uso desses termos e, na hora da atividade, algumas crianças se lembraram. Pensamos juntos e optamos por traduzir para: ‘Are most of the people in Kenya black and brown?’”, explica.

Além de recordarem aprendizagens já adquiridas e fazerem associações, a troca entre as crianças e a professora possibilitou grande ampliação de repertório linguístico dos alunos. Todas as questões foram escritas em inglês, organizadas em uma nova lista, e lidas pela turma. No dia da videochamada, cada criança já sabia qual pergunta iria fazer para o correspondente Adan.

Uma das aulas de Inglês, de 50 minutos, foi reservada para a realização da videochamada. Havia um telão, para que todos pudessem ver Adan, e um computador com a webcam direcionada para a turma, para que ele pudesse ver todas as crianças. Uma a uma, cada criança se aproximou da webcam e com a ajuda da professora fez sua pergunta, em inglês, para ele. Além de praticarem a oralidade em um idioma estrangeiro (speaking), as crianças também puderam desenvolver a compreensão auditiva (listening).

“Alguns tiveram vergonha de falar, outros nem um pouco. Sopramos a pergunta para a criança que não sabia de cor ou não conseguia lê-la. Na hora da resposta, quem entendia algo já levantava a mão para falar o que era. Eles ainda são pequenos para entender tudo o que ouviam, mas pegavam algumas palavras, formavam sentido e eu ia contextualizando. Quando Adan dizia algo que provocava alguma reação em nós, professores, os alunos logo perguntavam o que era. Todos queriam entender o que estava sendo compartilhado”, relembra a professora.

Curiosas sobre o ensino de línguas em outros países, algumas perguntas elaboradas pelo grupo diziam respeito especificamente a isso: “Você fala alguma outra língua?” e “Você estuda português na escola? ”.

Ao saberem que, além do inglês, o swahili também é língua oficial do Quênia, as crianças se lembraram de um livro presente na biblioteca da escola nessa língua e refletiram sobre a importância do inglês no mundo, falado em muitos e diferentes países. “O Adan vai falar na língua mais próxima para nós. Porque quase todos os países falam inglês, falam a língua do país e inglês”, disse uma das alunas.

Depois da videochamada, o grupo resolveu enviar para Adan e sua família um presente: desenhos, um tabuleiro de shisima, uma carta e um manual com as regras do jogo. Tudo escrito na língua falada pelo destinatário. Como na aula de Inglês as crianças também brincam com jogos, alguns comandos já fazem parte de seu repertório, o que facilitou o processo. Após o estudo sobre jogos e a conversa com Adan, outras palavras também já estavam incorporadas.

Como finalização desse contato, a última etapa foi uma leitura que Adriana realizou da carta enviada por Adan como resposta à carta dos alunos.

“Fiquei super feliz com a oportunidade de fazer algo interdisciplinar. É legal e necessário que eles entendam que o inglês não é separado de suas vivências, mas faz parte do cotidiano. E cada vez que uma oportunidade de conversar com um estrangeiro se apresenta, ficamos felizes. É muito gratificante ver as crianças fazendo esses contatos”, finaliza Adriana.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.