O G2 ampliou seu repertório de brincadeiras e seus conhecimentos sobre outras formas de infância
Reportagem: Gabriely Araújo

A cena se desenrolou de forma espontânea. As professoras do G2 Patrícia Rafante e Tatiana Bittencourt exibiam um vídeo que mostrava crianças guaranis da terra índígena Rio das Cobras, no Paraná, se divertindo com a brincadeira “A Onça e a Galinha”. Enquanto uma menina indígena narrava as regras em sua língua, a inquietação surgiu entre os pequenos: “Eu não estou entendendo nada!”, exclamou Cecília. “Eu também não!”, concordou a colega Luísa. A surpresa maior veio com a pergunta de Benjamin: “Por que ela está falando inglês?”.
A língua inglesa é a principal referência de um idioma diferente do português que as crianças possuem: está presente na escola, nos meios de comunicação e até na casa de muitas famílias. Por isso, é natural que elas imaginem que toda língua que não entendem é o inglês. “A pergunta do Benjamin ecoou entre todos”, relatam as educadoras. Para a equipe, que incluía a orientadora Luciana Cabral e a atelierista Danielle Silva, o momento ressaltou a importância de apresentar uma variedade maior de culturas à turma. “Percebemos como, desde muito pequenos, eles já estão capturados por um pensamento colonial”, explicou a professora Luciana.
O trabalho que seguiu teve como principal questão “Com quem aprendemos a brincar?”. A resposta, que viria ao longo dos meses, revelaria não apenas as influências familiares, mas também a oportunidade de ampliar o repertório cultural das crianças com uma intencionalidade clara: valorizar os saberes indígenas sob um aspecto decolonial.
O planejamento do trabalho começou com uma investigação, pelas professoras, sobre o tema. Esse processo incluiu um vasto acervo de livros e referências como o currículo da cidade de São Paulo e o conjunto de materiais “Território do Brincar”. Antes desse processo, ainda, as educadoras também estiveram no Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo, que contribuiu para o processo investigativo e de aprofundamento sobre seus saberes indígenas.
A construção do trabalho também demandou uma reflexão intensa sobre como o material seria trazido à sala de aula. “Precisamos cuidar muito para não fixarmos nos estereótipos”, ressalta a orientadora Luciana. Por isso, a escolha de materiais foi bastante cuidadosa.
Para dar início ao projeto, as professoras apresentaram o vídeo sobre A Onça e a Galinha, que mostrava as crianças Guarani brincando no pátio de uma escola, ao invés de imagens que reforçassem a ideia de que os povos indígenas só vivem isolados. “Isso, por si só, já traz para eles uma ideia de que são crianças em uma escola, com uma rotina que tem pontos em comum com a deles”, conta Patrícia.
Para reforçar a diversidade, a equipe também usou um vídeo elaborado pela equipe do Vera durante uma visita à Terra Indígena do Jaraguá, em São Paulo (leia aqui a reportagem sobre esse projeto e veja o vídeo ao final) como mais uma referência de modo de viver indígenas. “Não tem um jeito só de ser indígena no Brasil. Tem muitos que vivem hoje na cidade, usam celular e não são menos indígenas por conta disso”, completa Patrícia.
Experimentando novas brincadeiras
A escolha de “A Onça e a Galinha” como brincadeira deu início ao projeto e surgiu de uma observação cuidadosa das educadoras. Elas notavam que os alunos já gostavam de imitar animais nos momentos livres. “Interpretamos que, nessas brincadeiras, o que está em jogo é o transformar-se, trazer a força do animal para o corpo”, registraram.




Após a exibição do vídeo, a turma foi convidada a vivenciar a brincadeira. O que começou como uma imitação logo se tornou um campo fértil para negociações. Muitas crianças, inicialmente, queriam ser a galinha para não serem pegas pela onça. Foi preciso conversar sobre as regras, sobre a importância de cada papel e sobre o fluxo do jogo. Em uma dessas rodas de conversa, a professora lançou a questão: “E se tiver só galinha? E não tiver nenhum pintinho?”. A lógica infantil respondeu prontamente: “A onça não vai comer ninguém! A onça vai ficar com fome!”, disse a aluna Maria Luiza. “A brincadeira acaba!”, concluiu a estudante Luíza. As regras, então, foram elaboradas coletivamente e registradas em um cartaz.
Para aprofundar a questão da língua, a equipe convidou a professora Daniela Morita, conhecedora da cultura Guarani, para conversar com as crianças. Ela explicou mais sobre a língua falada no vídeo e ensinou algumas palavras. O vocabulário foi rapidamente incorporado pelo grupo. A onça passou a ser chamada de tivi, e as crianças já pediam: “Eu quero o livro da tivi!”, como fez Cecília. As novas palavras e a brincadeira passaram a fazer parte do cotidiano, expressas em desenhos do “arranhão da onça”, como o de André, ou na “escrita” das regras, como fez Antonia.



O projeto mostrou que a valorização da diversidade cultural pode e deve começar cedo. As crianças levaram a brincadeira e as novas palavras para suas famílias, que foram fundamentais para a construção das aulas e das atividades, ampliando o alcance da investigação. Ao final do ciclo, que ocorreu de agosto a novembro, foi realizada uma exposição com desenhos e imagens das crianças, além de áudios e vídeos.
A equipe concluiu que a experiência se alinhava ao conceito de interculturalidade. “A brincadeira da onça e da galinha conecta nossa intencionalidade de viver as brincadeiras indígenas com a possibilidade de viver encontros entre culturas”, afirmaram as professoras em seu registro final. Elas citam o escritor e filósofo Daniel Munduruku para reforçar a importância do brincar na formação da criança indígena: “O jogo coletivo educa o corpo, as histórias educam o espírito. Esse tipo de atividade faz com que as crianças aprendam a ser um sujeito individual em uma comunidade”.
Através de uma brincadeira, assim, as crianças do G2 não apenas se movimentaram e se divertiram, mas também aprenderam sobre a diversidade de línguas e costumes. Descobriram que, apesar das diferenças, havia muito em comum: o desejo de se transformar, a alegria do jogo coletivo e a curiosidade sobre o outro.
Para saber mais
Vídeo | Brincadeira A Onça e a Galinha, publicado no Portal Lunetas.
Reportagem | O que podemos aprender com a infância das crianças indígenas?, publicada no Portal Lunetas.
Vídeo | Série Território do brincar.