Na biblioteca, um encontro de leitores desperta questões sobre identidade e cuidado

Wellington Soares

Os moradores do entorno das ruas Votupoca e Jaricunas estão acostumados com passeios de turmas de crianças pelo bairro. Os alunos da EMEI Professora Ana Maria Poppovic circulam por ali, dando voltas no quarteirão, indo à feira ou apenas se dirigindo à biblioteca municipal que fica ao lado da escola. Em 2022, os alunos do Integral também passaram a circular por ali com os olhos atentos em busca de descobertas. Por meio de um projeto de trocas entre leitores, promovido por educadoras das duas escolas, os grupos agora estão aprofundando as relações e discutindo sobre leitura, o bairro e as relações étnico-raciais.

Ocupar o espaço público, transformando a cidade em um território que acolhe as infâncias, é um dos pontos centrais do projeto do Vera Integral. Por isso, as crianças são levadas com frequência a circular para além dos portões da escola, fazendo observações e até propondo intervenções. As visitas à biblioteca foram iniciadas logo que a Unidade foi inaugurada. E foi no caminho até ela que a turma da professora Adriana dos Santos Patarra descobriu a EMEI Ana Maria Poppovic. “Começou a surgir uma vontade de conhecer mais as crianças que eles só viam pelos buraquinhos do muro”, conta Vanessa Leite Rosa Morales, professora da turma Lagarta na EMEI.

A EMEI Professora Ana Maria Poppovic é um dos grandes patrimônios do bairro. Foi fundada em 1956, e nela estudaram boa parte dos moradores dos arredores, assim como seus filhos e netos. Pela proximidade com o território, a interação com ele é parte central do projeto político-pedagógico da escola. “Desde que me tornei professora aqui, há 10 anos, fazemos idas à biblioteca, à feira ou damos voltas no quarteirão, e os alunos sempre veem isso como uma aventura”, conta Vanessa. A biblioteca é um dos locais favoritos de alunos e educadores: todas as turmas fazem visitas semanais, e os educadores a frequentam em momentos de planejamento e trabalho individual.

A Unidade Vila Ipojuca do Vera foi fundada em 2022. Pouco antes, quando a construção da escola começou, a vizinhança ficou curiosa. “Não sabíamos o que era. Quando soubemos que seria o Vera, pensávamos: ‘Como vai ser uma escola se não estão subindo nenhum prédio?’”, lembra Vanessa. A valorização de espaços abertos e multifuncionais faz parte da proposta dessa nova Unidade, tanto quanto o apreço da instituição pelo ambiente externo. Como uma das ações para aproximar a nova escola da comunidade, a coordenadora Clélia Cortez convidou os educadores da EMEI a participarem das formações dos educadores do Vera. Vanessa se interessou e assim se aproximou de Nana.

Juntas, as duas professoras começaram a planejar atividades para aproximar as crianças das duas instituições. A ideia que surgiu foi que as turmas realizassem, quinzenalmente, encontros de leitores na Biblioteca Clarice Lispector. Para isso, a primeira etapa proposta por elas foi que ambas as turmas visitassem os colegas na escola em que estudavam. Assim, os alunos do Vera foram até a EMEI e vice-versa.

Nesses encontros, as crianças se aproximaram por meio do compartilhamento de brincadeiras. Depois dessa fase, os encontros na biblioteca começaram. “Agora o Vera faz parte da lista de lugares que visitamos com os estudantes”, conta Vanessa.


Identidade e relações em discussão

Na Biblioteca Clarice Lispector, as crianças sentam em roda. A dinâmica envolve uma conversa anterior — todo mundo se apresenta para que relembrem os nomes uns dos outros — e a leitura em voz alta dos livros escolhidos pelas docentes que fazem parte do acervo da própria biblioteca.

Alinhados com a proposta de educação para as relações étnico-raciais, desenvolvida tanto no Vera quanto na EMEI, o primeiro livro escolhido foi Tranças de Bintou, de Sylviane A. Diouf. Nele, a narradora Bintou reflete sobre sua relação com o próprio cabelo. Após a leitura, uma discussão entre os estudantes aprofunda a compreensão sobre a obra. “Uma aluna levantou que o cabelo da personagem era parecido com o dela, e aí toda a turma parou para discutir e apreciar”, recorda Nana.

De forma sutil, também aparecem nessas discussões pistas sobre o que as crianças, mesmo tão pequenas, já têm aprendido sobre as relações étnico-raciais. Vanessa conta que, nessas oportunidades, surgem discussões sobre ideias como o que é considerado bonito ou feio. “Nosso papel nesses momentos é acolher essa fala para depois planejar maneiras de aumentar o repertório das crianças e trazer de volta essas conversas”, diz. A proposta se relaciona com as Diretrizes Nacionais para as Educações Étnico-Raciais: no documento, afirma-se que o trabalho com as relações étnico-raciais envolve quase sempre um processo de reeducação, ou seja, de desconstrução da maneira como as crianças são ensinadas em contextos externos à escola a se relacionar com pessoas diferentes delas.

Outro livro lido pelas turmas foi Tanto, tanto!, de Trish Cooke, que narra a noite de uma festa de aniversário. Cada convidado que chega à celebração faz questão de cumprimentar o bebê da casa de uma maneira diferente. De acordo com Nana, as expressões utilizadas na obra levantaram um debate interessante: “As crianças ficaram muito surpresas com algumas expressões no livro sobre como os adultos falam ‘eu quero apertar esse bebê’”, lembra. A discussão girou em torno, então, de como os adultos e adolescentes demonstram carinho e afeto.

Outro tema que veio à tona foram os sonhos dos pequenos. Como o livro conta sobre a noite de uma festa de aniversário do pai do bebê, as crianças se sentiram empolgadas para conversar sobre as festas de aniversário com que sonhavam.

O projeto cumpre um dos papéis da Educação Infantil: a reflexão sobre identidade, cuidado e vida em grupo. A Base Nacional Comum Curricular, documento que define os objetivos de aprendizagem para a Educação Infantil, define que as crianças devem viver interações e brincadeiras que as levem a aprofundar suas aprendizagens sobre “o eu, o outro e o nós”.

Para registrar os encontros realizados quinzenalmente e diminuir ainda mais a distância entre as turmas, as professoras propuseram a criação de um caderno que os dois grupos usam para se corresponder. Nele, cada turma decide o que quer contar aos colegas. “Escrevemos o que der vontade”, conta Vanessa.

O projeto continua a todo vapor, e as professoras continuam em contato para pensarem em maneiras de aproximar ainda mais as crianças umas das outras e da participação cidadã no bairro. “Esperamos que as crianças fiquem cada vez mais próximas e possam refletir até sobre a cidade, sobre a biblioteca e até propor intervenções nesses lugares”, afirma Nana.

Luiz Lira

Luiz Lira morou em Pernambuco e lá iniciou o desenho. Ao vir para São Paulo, começou a fazer gravuras ainda criança, quando entrou no Instituto Acaia. Seus estudos tiveram relação com a capoeira, o desenho e a cerâmica; essas três vertentes estruturam o seu fazer artístico hoje. Posteriormente, ingressou no Instituto Criar e fez formação em Cinema. A partir daí, dedicou-se aos estudos para vestibulares em universidades, assim participou do Acaia Sagarana. Lira ingressou na Unicamp e atualmente cursa Artes Visuais.  A experiência universitária faz com que se aproxime de outros grupos de gravuras, como Ateliê Piratininga e Xilomóvel. Também tem contato com Ernesto Bonato, que é um grande artista e pessoa. Trabalha em ateliês compartilhados em Campinas (SP) e suas produções são semeadas em diversos espaços.