Literatura para Crianças e Jovens

Te mando uma flor… Te mando a ausência da flor

O que temos em mãos é um livro em formato brochura, com aparência de caderno pessoal, poderíamos dizer quase íntimo – em letra minúscula estão tanto o título como o nome da autora com um desenho de uma flor em seu ramo, ao estilo dos desenhos botânicos, de cor esmaecida, contendo inclusive (talvez) o nome científico da planta em uma etiqueta pequena que não é possível ler com nitidez. É como se esse caderno tivesse sido encapado (à mão) com a “seda azul do papel que envolve a maçã” (da música “Trem das cores”, de Caetano Veloso), e sobre esta capa azul arroxeada estivesse colada uma folha branca que, além do nome do dono do caderno, tem a indicação de seu destino: ser um caderno de jardineiro. O logotipo da editora no fim da página tem mais visibilidade que os outros elementos da capa, sobressaindo-se para que se efetive em livro o que a princípio é um caderno privado e afetivo.

Só há uma letra maiúscula nos poemas desse caderno, no título de um deles – “walking with Thoreau” –, como se recusasse desde a escolha gráfica o autoral no substantivo próprio, permitido para Thoreau, mas não para Angela-Lago. No entanto, no final do livro, antes do colofão, há uma biografia da autora em que a letra maiúscula assume seu nome próprio, mas a flor que antecede esses dados pós-textuais é representada por um desenho incompleto em que as pétalas, ainda fechadas, não foram coloridas.

Uma biografia em processo, ou a poeta que começa a desabrochar neste jardim? As duas coisas. Representante consagrada, como autora e ilustradora, do livro ilustrado, que ajuda a constituir no Brasil, Angela-Lago se apresenta com esse caderno também como poeta da palavra, nos oferecendo esta íntima experimentação: o primeiro livro (ilustrado) de poemas que escreveu. Em 2017, este livro foi merecidamente reconhecido, ao receber o selo Altamente Recomendável da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) na categoria Poesia. A autora, entretanto, já tinha se aproximado das letras, sobretudo da poesia, traduzindo dois grandes poetas: Emily Dickinson e Rainer Maria Rilke.

Em uma entrevista concedida, Angela afirma que as traduções que fez, tanto de Rilke como Dickinson, lhe trouxeram uma devoção à beleza. Quando lhe perguntam o que é a poesia para ela, afirma ser uma experiência de aproximação com a beleza, que é tão intensa que substitui a experiência mística, tocando o indizível e o além de si mesmo.

Nesta mesma reportagem,¹ informa-se que a autora começou a vida literária publicando poemas no Suplemento Literário de Minas Gerais e só depois a poesia foi ganhando formas, tornando-se “desenhos com palavras”. Portanto, a poesia para Angela-Lago era um jardim há muito cultivado. Se representada por uma flor, seria talvez a hortênsia de seu caderno: “horto absorto/ e nenhuma flor fortuita/ ouçam ao longe o rondó:/ sou muitas / para ser uma só”.

Consta que Angela-Lago, ao se mudar para Biribiri em 2014, uma pequena cidade de Minas Gerais, no Vale do Jequitinhonha, dedicou-se a desenhar as flores do cerrado como exercício de observação.² Com O caderno do jardineiro, resultado de um aprofundamento pessoal na palavra e na imagem, ela nos aproxima deste seu vigoroso exercício da beleza, exigindo de seu leitor (que é também um leitor juvenil, mas, sobretudo, crítico) adentrar e atravessar com ela esta prática de delicadeza.

            Nas peculiares ilustrações desse caderno, as imagens nos dão a ideia de que foram “fixados”, nas páginas brancas, ramos, sementes, folhas e, sobretudo, flores; há também uma flor entre as páginas no índice do livro, como esquecida/guardada e da qual vemos apenas um detalhe da pétala e do estame. Diferentemente da imagem botânica da capa (que se repete com o acréscimo de uma joaninha sob as folhas no primeiro poema da coletânea), as flores têm cores vivas, não estão secas como pareceriam flores e folhas deixadas em um caderno/livro. Além de usar o procedimento de interferir em fotos, como já havia feito em livros anteriores, neste as intervenções apresentam uma imagem inacabada, também com desenhos muito delicados, sem cor; mais do que isso, a ilustração “borra” a página em que está e aparece em sombra invertida na página anterior. Talvez para indicar que a flor, folha, semente, ficou secando na página e se desidratou na folha de papel, ou para denunciar, por este recurso, a passagem do tempo “impressa” na folha branca. Um procedimento que tem íntima relação com os poemas: palavras interrompidas, pensamentos em construção, escrita inacabada, experiência da finitude.

Este recurso gráfico, associado ao tema dos poemas, fica claro, por exemplo, na sequência de “improviso de um trinado” e “jardim fechado”. No primeiro poema, um sabiá canta ensandecido no crepúsculo, e ninguém lhe dá atenção, apenas a rosa atenta desabrocha. E, no desenho de linhas finíssimas de uma rosa sem cor, borra a rosa vermelha fotografada em botão na página seguinte, no poema em que tematiza a rosa – esta flor cerrada em si, escondendo um segredo, presa dela mesma.

Nesta coletânea de poemas, a flora é um disparador para falar da ausência, como no primeiro poema – “à maneira de prefácio”: “te mando uma flor/ e embora não a recebas, sabe que ficou no ar o gesto/ o tempo nos faz silêncio e pausa/ ao longe, as montanhas se azulam/ te mando a ausência da flor”. Ou para abordar a materialidade de um signo, como no poema “a palavra” em que “flor” é palavra que brota, cujo som reverbera no pulmão e tem uma parte oca.

O jardim (espaço externo da casa e ao mesmo tempo interno à casa) e o jardineiro (quem trabalha a permanência da beleza pela técnica telúrica) funcionam como metareferência, explicitada no poema que dá título à coletânea, indicando a feitura do poema relacionada ao ofício do jardineiro – “arar o solo a argila o colo /arejar a terra escura/ nesse piso a semente se costura” –, que se desdobra, ainda, na pretensa materialidade das ilustrações, com fragmentos de fotos e desenhos incompletos – “e, ausente, se desenha a antiga flor/ o mesmo aviso de cor/ que logo se aniquila”.

Ao observar uma flor, porém, transcende-se o que é visto e o olhar se direciona para si. A busca por completude ao observar a natureza – “tudo é flor e à flor da pele” – de fato encontra um tempo breve rumo ao fim. É o que podemos perceber na conexão poema-imagem em “cantiga”, em que a raiz do poema posterior – “canção triste” (último poema da coletânea) – invade e completa a flor ilustrada rente ao botão com sua haste fina. E, à pequenina flor amarela transposta da ilustração da página anterior, encaixa-se uma raiz que, embora frágil, se aprofunda, em um poema que se pergunta sobre a vida e o tempo: “vida vida o que me espera/ se mal te encaixo no abraço/ e passas feito uma brisa”.

Desta forma, a flor, na sua inteireza e ao mesmo tempo extrema beleza, desce dos céus da transcendência e tangencia a raiva (no poema “um boi no meu quintal”), a morte (em “sempre-sem”), o que é pequeno e sem nome (como no poema “a flor sem nome”).

Há finitude na imagem da flor que seca e morre (no poema “o vaso”) bem como procura pessoal de quem tateia uma identificação, por exemplo, com “a flor-do-cerrado”, que é deus, bicho e fêmea, “e em torno dela gravita/ descerrado também/ algum eu”.

Em O arco e a lira, Octavio Paz,³ ao pensar a poesia, entende que esta não se propõe a consolar o homem, mas sim reunir o mundo na dispersão de seus fragmentos. Se, por um lado, o que caracteriza o poema é a dependência da palavra, por outro, é sua luta para transcendê-la. Sendo assim, o poema, para além das palavras, é uma tentativa de dizer o indizível, separando um instante privilegiado (o aqui e agora) do tempo transcorrido (corrente temporal). Para escapar da condição temporal, continua Paz, temos de nos fundir ao tempo para melhor ultrapassá-lo. Desta forma, a experiência poética nada mais é do que a revelação da condição humana. E sendo o poema uma obra inacabada, esta se dispõe a ser completada e vivida pelo leitor.

No caso dos poemas de Angela-Lago, no instante de observar a flor, o tempo se presentifica, iluminando um fragmento temporal e revelando o real que, tal qual uma fotografia, resulta inapreensível. Inebriado em um agora de delicada beleza, o leitor é convocado a visitar seu íntimo jardim/caderno de poesia, semeado pela jardineira que urdiu palavras para dar conta de um iminente eu – “até a caneta desaparece/ eis que de repente sou um traço / sou a cor/ a sombra na caverna/ virou flor” (do poema “lantana camará cambará”, três nomes para uma mesma flor).

Difícil tirar das mãos esse caderno – destinado a ser livro de cabeceira –, que tem o efeito de nos capturar em sua singeleza vibrante, como em “o significado das cores”, poema que se aproxima do outro/leitor em uma doação que direciona a cor da flor (com a ilustração das três flores: amarela, vermelha e azul, a última com um inseto pousado sobre ela) à potente palavra poética, em um procedimento imprevisível, no qual os pronomes são, ao mesmo tempo, pessoais e estrangeiros – “amar ello/ ver-me-yo/ a su lado”.

            Com seu caderno de jardineiro, Angela-Lago nos presenteia (um pouco antes de sua morte, repentina, em 2017), dando forma ao que Rilke, em um poema de sua tradução, propõe como inquietante questão para o procedimento poético:      

Compor e recompor
de tanto modo diverso,
mas como alcançar o verso
que se iguala a uma flor?

O caderno do jardineiro
Escrito e ilustrado por: Angela-Lago
Edições SM
2016

REFERÊNCIAS

1 “Angela Lago lança livro com traduções de poemas escritos em francês pelo poeta alemão Rainer Maria Rilke”, por Walter Sebastião, publicado no Portal Uai E+, em 20/04/2013. Disponível em: https://www.uai.com.br/app/noticia/pensar/2013/04/20/noticias-pensar,141792/consolo-da-beleza.shtml

2 “Angela-Lago se muda para Biribiri e encontra inspiração para criar histórias”, por Ana Clara Brant, publicado no Portal Uai E+, em 09/11/2014. Disponível em: https://www.uai.com.br/app/noticia/e-mais/2014/11/09/noticia-e-mais,161263/angela-lago-se-muda-para-biribiri-e-encontra-inspiracao-para-criar-nov.shtml.

3 Paz, Octavio. O arco e a lira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

4 Rilke, Rainer Maria. Esboços e fragmentos. Seleção e tradução de Angela-Lago. São Paulo: Scipione, 2013, p. 27.

Meire Cristina Gomes

Formada em Ciências Sociais pela USP e em Biblioteconomia pela FESPSP, trabalhou no mercado editorial como editora e revisora de textos. Atualmente é bibliotecária escolar e cursa a pós-graduação Literatura para Crianças e Jovens no Instituto Vera Cruz.