Por Kamila Cardoso Maffei Matsumato
A escolha do livro de poesia para análise crítica da disciplina “Poesia: a infância da linguagem” não foi uma tarefa difícil. O grande pequeno livro Escondido, da autora chilena María Jośe Ferrada, com ilustrações de Rodrigo Marín Matamoros, publicado no Brasil, em 2016, pela editora ÔZé, já circulava em minha casa entre leituras no café da tarde e nos momentos em que queria algo para ler e sentir.
María José Ferrada é escritora e jornalista e um dos nomes mais conhecidos da poesia infantil em seu país. Já publicou dezenas de livros e recebeu vários prêmios. O ilustrador Rodrigo Marín Matamoros é designer gráfico e cofundador da revista Intemperie.
O livro Escondido, que recebeu o prêmio Fundación Quatrogatos em 2016, é pequeno no tamanho, talvez para se aconchegar melhor em mãos pequeninas, e sua linguagem é simples e ao mesmo tempo complexa, como o pensamento das crianças. De acordo com publicação do site Troquel, do Centro de Estudios Fundación La Fuente, o cineasta russo Andrei Tarkovski, em seu livro Sculpt in Time, 1986, assim define a simplicidade: “Tender para a simplicidade é tender para a profundidade da vida representada, mas encontrar o caminho mais curto entre o que se quer dizer e o que é realmente representado na imagem finita é um dos objetivos mais árduos em um processo criativo”.
Os poemas em Escondido lembram brincadeiras de criança, nas quais, com recurso à fantasia, imaginamos o que está oculto nos objetos e na natureza. Quem nunca brincou com a sopa na hora do jantar?

“Dentro da sopa tem um mar por ele navegam as batatas em forma de barco.
Só a sopa sabe das ondas de peixe
e cenoura.
E dos oceanos, que não são cinco, e sim milhares.
Eu me pergunto por que não aparecem nos mapas
esses mares. Por que ninguém nunca fez o mapa da sopa.”
São metáforas que podem causar certo estranhamento, pois, para encontrar o que está escondido, é preciso desautomatizar o pensamento racional e dar lugar ao livre-pensar próprio do infantil, ou seja, à possibilidade de criar e imaginar. Neste sentido, María José Ferrada e Rodrigo Marín Matamoros brincam fazendo poesia como brincadeira de criança, propondo ao leitor que encontre um guardião vermelho dentro das cerejas ou uma família de vaga-lumes dentro da lâmpada.
Rodrigo Marín Matamoros consegue traduzir em imagens nossos pensamentos enquanto lemos, compondo poemas visuais.

“Dentro do armário tem um jardim. E em cada gaveta, uma estação diferente.
As meias se confundem com as folhas amarelas. E ao lado das camisetas florescem samambaias. Chove, chove, chove entre os sapatos.
E os vestidos já não suportam outro dia de verão.”
O silêncio também tem função importante no livro. Permite pausas que levam a imaginar todas as coisas escondidas. Ao final da leitura de cada poema pode surgir um sorriso, um suspiro ou até uma afirmação: “Ah, afinal, dentro das árvores realmente tem um coração de madeira pulsando!”. Depois de ter lido, parece tudo muito óbvio.

“Dentro das árvores tem um coração de madeira,
que palpita ao ritmo das estações
e do canto dos grilos.”
María José Ferrada respondeu-me algumas perguntas sobre Escondido. Ela reafirma alguns pontos de minha análise e suscita ainda mais encantamento, ao compartilhar seu modo peculiar de observar a vida e a infância. A seguir, compartilho o registro dessa conversa:
Kamila – Quando leio seu livro Escondido, imagino uma brincadeira de criança, o que um objeto pode virar ou o que ele pode ser em nossa imaginação. O que é preciso para encontrarmos o que está escondido dentro das coisas? Como você faz para se libertar das formalidades da linguagem e falar sobre coisas tão simples e belas, voltando à infância?
María José – Acho que, como você diz, uma opção é tentar voltar à infância, mas como nem sempre podemos encontrar essas memórias dentro de nós, acho que uma boa forma de nos conectarmos com essa liberdade que você mencionou é observar as crianças. Mas não daquele lugar de superioridade a que os adultos estão acostumados, mas prestando atenção às perguntas que são feitas e às formas como encontram as respostas. O livro Escondido é baseado na observação de brincadeiras infantis. Para uma criança, a vassoura pode se transformar em um cavalo de balanço e isso faz com que sua tarde mude, que em vez de ser uma tarde na sala de casa, é uma tarde em uma campina que só a criança consegue ver. Eu realmente admiro a maneira como as crianças, por meio das brincadeiras, mudam sua realidade.
Kamila – Além das metáforas, percebo o silêncio em sua poesia. Acredito que as pausas são importantes para o texto. Ao menos em minha leitura é esse silêncio que me faz chegar na imagem. Será que estou fazendo uma leitura correta com relação ao silêncio em sua poesia?
María José – Sim, acho que a poesia se sustenta nesses silêncios que permitem ao leitor interagir, buscando sua memória, sua experiência. Parece-me que a poesia trabalha com esse espaço livre de forma mais perceptível do que outros gêneros literários.
Kamila – Como foi seu processo criativo ao escrever Escondido? Teve alguma influência da poesia oriental, dos haicais?
María José – Mais do que com o haicai, que é uma forma de poesia que gosto muito e da qual aprendi sobretudo a síntese, este livro foi inspirado na brincadeira e no olhar das crianças, capazes de encontrar aquela outra vida, na qual nós, adultos só vemos uma interpretação.
Kamila – Em seu livro, o texto e a ilustração se complementam. Era como se eu estivesse realmente vendo aquelas imagens durante a leitura. Qual a importância da ilustração em suas obras para crianças?
María José – Ilustração é fundamental não só para o meu trabalho, mas acho que para a literatura de meninos e meninas em geral. No caso de Escondido, gosto muito do trabalho que Rodrigo Marín fez, porque em vez de procurar uma imagem que complementasse o texto, deu-se ao trabalho de compor poemas visuais, que funcionam independentemente do texto, mas na mesma harmonia poética. Também nas imagens está presente aquele silêncio de que fala, por isso me parece que a partir da imagem também há confiança no pequeno leitor.
Escondido é um livro para pequenos e grandes. Os pequenos certamente terão mais facilidade para encontrar tudo o que está escondido dentro das coisas. Já para os grandes, pode ser uma bela oportunidade de encontrar o fantástico que em algum momento se perdeu e voltar a imaginar maneiras divertidas de ver a vida e o mundo que pode estar escondido dentro das coisas.

Escondido
Escrito por: María José Ferrada
Ilustrado por: Rodrigo Marín Matamoros
Tradução: Carla Caruso e Fernando Villalba
Editora Ôzé
2016
REFERÊNCIAS
www.troquel.cl/maria-jose-ferrada-la-nueva-voz-de-chile/
www.publishnews.com.br/materias/2020/08/05/invasao-das-chilenas