Literatura para Crianças e Jovens

Por que apresentar Elza Soares às crianças?

“Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim cantar.”

[Alice Coutinho e Rômulo Fróes]

 Em um país campeão em índices de feminicídio, racismo e aporofobia a publicação da biografia ilustrada de uma cantora negra, nascida em uma favela carioca, pode gerar incômodo ou mesmo passar indiferente para boa parte dos leitores. Por que apresentar Elza Soares às crianças? O que em sua vida “merece” ser contado em livro? Na lógica das vidas que valem mais à medida que menos pretas, merecimento é a régua que traça um destaque aqui, outro ali, preferencialmente daqueles que ralaram muito para conseguir qualquer reconhecimento em vida, fazendo jus à tal meritocracia.

Só por contrariar essa lógica perversa, o livro Elza, a voz do milênio, já seria altamente indicado para leitura. Para além desse aspecto, a vida que se conta ali guarda semelhanças com muitas outras Elzas, Zezés, Ninas e, por que não, Margaridas, Marielles, Bernadetes, Marias da Penha. Mulheres que ousaram viver uma vida diferente daquela predestinada a elas, tornando-se marco na luta por direitos. A dedicatória do livro não deixa dúvida: “Para Elza. E toda a gente que resiste.”

Não à toa, quem escreve o texto é uma mulher negra, a poeta cearense nina rizzi, que assina seu nome com minúsculas, do mesmo modo que bell hooks, intelectual negra afroamericana cujos livros infantis nina traduziu para o português. Há uma coerência ética e estética na seleção que a autora faz dos fatos da vida de Elza apresentados no livro. Podemos ouvir a voz rouca da artista em trechos que reproduzem não apenas seus grandes sucessos musicais, como suas emblemáticas falas. Um exemplo é o famoso diálogo travado entre ela e Ary Barroso, ao se apresentar no programa Calouros em Desfile (1953), quando respondeu à pergunta “De que planeta você veio”, dizendo: “Do mesmo planeta que o seu, seu Ary. Planeta Fome!” (p.14) Seguindo algumas páginas, descobrimos que Planeta Fome seria o título de um álbum lançado por Elza em 2019: “um álbum afrofuturista, onde mais do que cantar sobre a revolta, cantou sobre um mundo futuro, onde não sucumbimos, estamos vivos e vivas.” (p.40)

A sinceridade ácida de Elza Soares, somada ao senso crítico, aparecem nas muitas aspas escolhidas a dedo pela autora, num bonito tributo, a um só tempo afetivo e político, como se evidencia neste trecho em que cita um comentário da cantora sobre seu álbum Deus é mulher (2017): “Eu acho que Deus é mãe. Ele me ouviu desde criança, que eu venho pedindo socorro e misericórdia para uma menina negra, pobre, sem possibilidade nenhuma de vencer na vida. E acabei vencendo, com tudo para não dar certo e deu certo. Então Deus é minha mãe, Deus é mulher.” (p.39)

O mesmo vale para as referências ao contundente posicionamento político da cantora num país de herança colonialista, escravista, conservadora, careta, tão bem resumido nas páginas finais do livro: “Sua voz é um presente que canta as lutas e as glórias do povo negro, das pessoas que vivem em pobreza, das crianças, das mulheres, das pessoas LGBTQIAPN+, histórias muitas vezes silenciadas.” (p.44)

Um percurso por sua vida, desde a infância, até os últimos anos, passando pelo casamento com o jogador de futebol Mané Garrincha e pelo exílio no período de ditadura militar no país, se apresenta de maneira fluida e sem didatismo. Explicações excessivas não caberiam na biografia de uma mulher irreverente, que fez da arte não apenas seu sustento, mas sua principal forma de luta contra as injustiças sociais. O aspecto artístico, sem dúvida, se intensifica na escolha de um artista gráfico também negro e músico, Edson Ikê, para compor as ilustrações que acompanham o texto.

A ilustração da belíssima capa se reinventa em imagem de página dupla, no interior do livro, apresentando uma Elza Soares envelhecida, mas não menos exuberante, homenageada pela escola de samba carioca Mocidade Independente, com o enredo “Elza Deusa Soares” (2020). Como ondas sonoras algumas imagens atravessam as páginas em dimensão e perspectiva crescentes, unindo tempos distintos da vida da artista. Um astral elevado se reflete nas cores quentes, criando uma ambiência envolvente que dialoga com a fluidez e a intensidade do texto verbal. Como diz Edson Ikê em sua apresentação, na última página do livro: “tive o prazer de ilustrar a potente história de Elza Soares, e o clima de samba e jazz sempre embalaram meus desenhos, traços e sonoridades.”

Quanto à pergunta lançada no título deste texto, para além dos argumentos aqui expostos, a partir de uma leitura atenta e afetiva do livro, vale lembrar os resultados da recente pesquisa realizada pelo Instituto Geledés, em parceria com o Instituto Alana: depois de dez anos de promulgação da lei 10.639/03, apenas 30% das secretarias municipais de educação efetivaram a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira em seus currículos. Se um tanto já foi feito, muito ainda há por fazer nesse sentido. Nas palavras de Elza Soares: “A carne mais barata do mercado foi a carne negra. Não é mais a carne negra. Eu sou negra. Minha mãe é negra. Minha voz é negra. O Brasil é negro. Repitam comigo, tá bem? Gritemos juntos. Unidos”. (p.37)

Sim, o Brasil é negro e indígena, ainda que muitos não queiram. E apresentar às crianças a vida de pessoas que orgulhosamente se autodeclaram pertencentes a estes grupos, é não só uma resposta tardia à mencionada lei, como também uma ação potente para a construção de imaginários – e convivências – antirracistas.

Elza – A voz do milênio
Escrito por: nina rizzi
Ilustrado por: Edson Ikê
Editora VR
2023
50 páginas

Cristiane Tavares

Doutoranda em Educação (Unifesp), mestra em Literatura e Crítica Literária (PUC-SP) e graduada em Jornalismo, coordena o curso de pós-graduação Literatura para Crianças e Jovens, do Instituto Vera Cruz, desde 2016 e o Projeto Jaê – Educação para Equidade, uma parceria entre a CE CEDAC, o Centro de Estudos e Pesquisas ateliescola acaia e a Secretaria de Educação de Santa Bárbara d’Oeste. Atuou como jurada em diferentes prêmios literários, participou de várias edições do programa “Super Libris” (TV Sesc) e foi curadora da FLIminha, programação educativa da FLIMA (Festa Literária Internacional da Mantiqueira) em 2021. É colaboradora permanente da revista Quatro Cinco Um. Autora de Quintais (2007) e Aos olhos do mar (2015), integra a coletânea Um girassol nos teus cabelos: poemas para Marielle Franco (2018). Organizou, com a professora Telma Weisz, o livro Literatura e educação, Editora Zouk (2021). Coordenou as oficinas de escrita que resultaram no livro Mães em Luta, várias autoras, Editora Fábrica de Cânones (2022).