Blog da Pós

Literatura para Crianças e Jovens

A caixa-forte do imaginário

Por Cristiane Tavares

De mãe ruandesa e pai francês, o autor, compositor e intérprete Gaël Faye nasceu no Burundi, de onde precisou fugir aos 13 anos de idade, em função da guerra civil deflagrada no país e do genocídio em Ruanda, na década de 90. Seu primeiro romance, Meu pequeno país (Rádio Londres, 2019), traz marcas autobiográficas e O tédio das tardes sem fim é inspirado em sua infância. No texto assinado pelo autor, nas últimas páginas do livro, ele conta que, quando menino, teve a oportunidade de se entediar, já que não havia escola no período da tarde, nem telas para entretenimento: “guardo desses dias imóveis a lembrança de um período encantado em que pude encher até a borda a caixa-forte do meu imaginário. O tédio das minhas tardes de infância era uma viagem em que o tempo me pertencia, um espaço onde eu fabriquei imensos sonhos.”

O livro é dedicado às duas filhas do autor, Suzana e Louisa, a quem ele deseja, justamente, “tardes sem fim, países imaginários e sonhos ilimitados”. O desejo estende-se aos leitores de todas as idades que encontram neste livro uma narrativa poética ilustrada com desenhos em aquarela, pelo premiado quadrinista e ilustrador francês, Hippolyte. As imagens do artista retratam o personagem em seu universo doméstico “na velha casa tétrica, da Bélgica dos trópicos”, inserindo, por vezes, elementos oníricos na paisagem realista. Em uma dupla de páginas, por exemplo, a casa de tijolos vermelhos, herança de uma violenta colonização belga, aparece minúscula, imersa em um imenso jardim com pomar e árvores imponentes, e, ao fundo, temos a imagem gigante do menino deitado, seu corpo estirado compondo a paisagem. Ele está fora da casa, num tempo-espaço outro, de reinvenção das dimensões.

O tédio das tardes sem fim (Editora Oh! Outra História)

O texto abusa da sinestesia e mergulha o leitor nas sensações das tardes sem fim: o sol “zebrando sombra e luz” através da janela da sala, a algaravia do papagaio e das aves no viveiro, o vento dançando nas cortinas, a torneira pingando, a chuva tamborilando no teto de lata, o silêncio da hora da sesta. Tempo suspenso propício aos encontros intimistas: “na hora das coisas estáticas, a mim mesmo fabrico.” Como diriam os versos da poeta Adélia Prado no poema ‘Leitura’, “eu sempre sonho que uma coisa gera/ nunca nada está morto/ o que não parece vivo, aduba/ o que parece estático, espera”. Fabricar-se a si mesmo nas horas estáticas pode acontecer, também, no encontro com o outro. Encontro afetuoso, que se dá em horinha de inteireza, quando se empreendem “expedições cavalheirescas, gargalhadas loucas, pactos de sangue.” A amizade marca presença nas tardes sem fim e o tédio a dois é cumplicidade em elevado grau: “amigo é o que conta, é o que resta, amigo, palavra infante.”

Amigos reais e imaginários cabem. Assim como intertextualidades: “Pequeno Príncipe do tédio, entre carneiro e fastio”. Enquanto os adultos fazem digestão, o menino “rumina mais de uma questão” e brinca de ser outro com os bonecos, corpo esparramado no chão. É na lajota fresca da sala, com desenhos em mosaico, que ele traça “rotas erráticas” com seus carrinhos de brinquedo e pode acompanhar a fileira de formigas “em parada militar a desfilar no matagal”. A observação ativa da natureza convoca para um “éden particular”. O menino vive a céu aberto, chupa manga do pé, descansa à sombra da figueira, “árvore-templo, árvore-universo”. Apequena-se e agiganta-se em seu quintal expandido. “Nada de mimo, bombom, guloseima. / Sem programa, sem tevê, um aquário era o que tinha pra ver.” Inimaginável para algumas crianças acostumadas a rotinas exaustivamente ocupadas, o tédio das tardes sem fim é trampolim para universos paralelos, “um descanso na loucura”, como diria Guimarães Rosa.

Neste tempo-espaço outro a ausência materna não se substitui. Não é preciso preenchê-la, evitá-la, escondê-la, apenas senti-la. “Escrevo cartas à minha mãezinha/ Ausência que aprendi a suportar estando eu tão sozinho.” Solidão que é nomeada tédio nos versos finais da narrativa poética, fechamento dissonante do restante do texto porque por demais conclusivo: “Assim foi minha vida,/ uma eterna rotina,/ a vida era assim:/ era o tédio das tardes sem fim.” Ritmado e melódico, feito refrão de uma canção, os versos que encerram o texto parecem buscar resumir à rotina e à rima o tempo alargado da infância: a caixa-forte do imaginário transbordante, o corpo em descanso agigantando a paisagem, o gosto das tardes ensolaradas à sombra das árvores, a cumplicidade amiga no silêncio a dois. Acompanhar o menino em sua povoada solidão abre janelas para infâncias ao ar livre, fabricantes de sonhos, sem fim desejadas.

O tédio das tardes sem fim
Escrito por: Gaël Faye
Ilustrado por: Hippolyte

Traduzido por: Alexandre Barbosa de Souza
Editora Oh! Outra História
2023
32 páginas

Cristiane Tavares

Doutoranda em Educação (Unifesp), mestra em Literatura e Crítica Literária (PUC-SP) e graduada em Jornalismo, coordena o curso de pós-graduação Literatura para Crianças e Jovens, do Instituto Vera Cruz, desde 2016 e o Projeto Jaê – Educação para Equidade, uma parceria entre a CE CEDAC, o Centro de Estudos e Pesquisas ateliescola acaia e a Secretaria de Educação de Santa Bárbara d’Oeste. Atuou como jurada em diferentes prêmios literários, participou de várias edições do programa “Super Libris” (TV Sesc) e foi curadora da FLIminha, programação educativa da FLIMA (Festa Literária Internacional da Mantiqueira) em 2021. É colaboradora permanente da revista Quatro Cinco Um. Autora de Quintais (2007) e Aos olhos do mar (2015), integra a coletânea Um girassol nos teus cabelos: poemas para Marielle Franco (2018). Organizou, com a professora Telma Weisz, o livro Literatura e educação, Editora Zouk (2021). Coordenou as oficinas de escrita que resultaram no livro Mães em Luta, várias autoras, Editora Fábrica de Cânones (2022).