Por Emily Stephano
“O bom da poesia é que você pode pular as normas.” Essa é a frase final de um dos trechos do rico posfácio escrito por Mar Benegas, concluindo seu Abecedário do corpo imaginado (MOVpalavras, 2015) depois de vinte e sete haicais ilustrados.
Benegas apresenta algumas das regras dessa forma curta de poesia – e como transgrediu várias delas. A autora espanhola mantém a busca da métrica, porém fala de emoções, utiliza metáforas e não tem como centro da produção elementos da natureza que costumam aparecer nesses poemas – plantas, animais, lagos. “Escrevi sobre o corpo, sobre as pessoas e seus sentimentos, sobre o que fazemos. Tudo isso, creio, faz parte da natureza e aí detive o meu olhar para escrever os haicais: um corpo imaginado, o seu, o meu, o do mundo, o dos demais”, alega a poeta.
Mar Benegas também rompe com a expectativa de quem busca em sua obra versos iniciados com cada letra deste abecedário ou em referência a algo que possa ser alfabeticamente ordenado. No início, aparecem asas, boca, caminhos, delicadeza – em versos e destaques diferentes.
Ainda assim, a coesão e a qualidade da obra poética permitem análises – que aqui serão feitas com apoio de outro alfabeto – o “ABC da literatura”, de Ezra Pound.
A POESIA ESTRUTURADA NO POEMA
Em 1934, o crítico literário americano Ezra Pound teve publicado seu livro ABC da Literatura (no Brasil, editado pela Cultrix). Na obra, o autor define três modos retóricos de análise da poesia, sintetizando aspectos da linguagem que podem ser espelhados nos conceitos de primeiridade, secundidade e terceiridade, vindos da semiótica peirceana, e nas matrizes da linguagem como sonora, visual e verbal, estruturadas pela pesquisadora brasileira Lucia Santaella. Pound aponta a melopeia como um destaque da sonoridade, a fanopeia pelo potencial imagético do poema e a logopeia pela combinação de forma e conteúdo como uma estrutura mais mental/conceitual.
Os haicais, por natureza, podem ser essencialmente classificados como fanopeia, uma vez que criam imagens de fugacidades da natureza. Como diz Mar Benegas, no posfácio de Abecedário do corpo imaginado: “São como uma visão de uma paisagem bonita pela janela de um trem a toda velocidade ou como receber uma boa notícia: beleza intensa e fugaz.”.
No haicai, “o poema se converte em uma fotografia feita com palavras”, diz a autora. Essa busca pela imagem, porém, é transpassada por duas questões: uma é a própria expressão “haicai”, que se origina dos conceitos “brincadeira, gracejo” (hai) e “harmonia” (kai). Outra é o fato de que as palavras são matéria prima dos poemas, vindas de outro conceito convencionado – a linguagem. Com isso posto, ao “transformar imagens em palavras”, invariavelmente conceito (logopeia) e sonoridade (fanopeia) podem ganhar algum destaque em determinados momentos.
A FLUIDEZ DA LINGUAGEM NOS HAICAIS DE MAR BENEGAS
Como já foi dito, haicais são como uma imagem congelada, ou seja, na combinação das palavras, busca-se criar uma cena na mente de quem os lê. Esse é o ponto que, nas definições de Ezra Pound, caracteriza o haicai como fanopeia. Alguns exemplos em Abecedário do corpo imaginado são:
Delicadeza:
não grites, não a assustes,
é borboleta.
Há esperança:
a flor entre o asfalto,
a primavera.
E a ilusão…
Pequena luz cintila
dentro do bosque.
Entretanto, a sonoridade se destaca em alguns casos, remetendo à melopeia – como o som de x/ch no haicai da letra Q:
Coaxa a rã,
respondendo a um queixume:
a Terra chora.
Em outros, identifica-se a logopeia em um trabalho mais conceitual com as palavras, por exemplo:
Os japoneses:
lá acendem o sol
toda manhã.
Kilos de amor,
porém também o ódio
numa balança.
Soçobrar, sim,
Zarpado e à deriva
chega-se a um porto.
A TRADUÇÃO – TRANSCRIAÇÃO DOS POEMAS
Na quarta capa do livro, uma imagem indica que dentro dele há “27 haicais”. Sendo um abecedário, o leitor atento irá notar uma letra a mais nesse alfabeto poético. Trata-se do ñ, tão usado e característico da língua espanhola.
Ao comparar a leitura da edição brasileira (MOVpalavras, 2015) com a original espanhola (A buen paso, 2013), nota-se que a tradução de Fábio Aristimunho Vargas buscou fidelidade aos poemas, ainda que perdesse algumas palavras do abecedário da autora – como no caso de huesos, que perdem o H na versão em português. Seu posfácio apresenta parte do processo e explicações sobre o mesmo.
A sonoridade também tem perdas na tradução, como a melopeia presente na versão original do haicai da letra espanhola ñ:
Ñoña la araña:
una niña sin pan.
Teje una cuna.
O tradutor optou por usar a letra como o dígrafo nh, entre chaves, porém a tradução dos versos não mantém a repetição do som n/ñ/nh como no original:
Nhonha aranha:
uma jovem sem pão.
Tece um berço.
Nota-se outras pequenas alterações da tradução, como “Bajo las piedras” (haicai da letra W), traduzido como “por sob as pedras”, em vez de “abaixo das pedras”, que parece uma escolha para manter a métrica do verso. Semelhante recurso ocorre com a substituição da vírgula por “é”, no verso final do haicai da letra X – “y él, de madera”, traduzido como “e ele é madeira”.
A IMAGEM NO HAICAI
Para além da visualidade dos poemas, as ilustrações de Guridi exercem na obra o papel de haiga – pintura concisa, de traços simples, porém muito expressiva e intensa, como os próprios poemas.
Em diversos poemas, silhuetas de pessoas aparecem em preto ou branco, pontuadas por cores e formas que refletem o gestual do autor no uso de tintas e pincéis e mesclam outros elementos da natureza a essas figuras humanas.
Por vezes, páginas duplas com fundo em cores semelhantes parecem agrupar poemas sequenciais, enquanto outras criam contrastes, tanto nas cores quanto no conteúdo:
A capa da edição brasileira mostra, em preto, a silhueta de uma pessoa em uma bicicleta. Sobre ela, repousa ou se derrama uma folhagem avermelhada. Na folha de rosto, é uma folhagem em tom de azul que aparece, porém como se saísse da cabeça em busca do céu. Na edição espanhola, essas ilustrações são invertidas e a cor da capa também muda.
ESCREVER HAICAIS
O posfácio escrito pela própria autora apresenta um pequeno histórico dessa forma poética, a justificativa de escolha em sua escrita, regras e dicas para quem quer escrever. A partir da segunda edição espanhola, uma breve antologia de haicais escritos por crianças após a leitura do livro – o que prova a capacidade de exploração poética presente na infância, mas também que precisa ser alimentada para desenvolver-se.
UM NOVO OLHAR SOBRE O CORPO
Os 27 haicais de Mar Benegas convidam a repetidas leituras, com novas descobertas ao observar o corpo pelo olhar da linguagem poética. Seja pela potência de liberdade, a capacidade de abarcar detalhes e grandezas do mundo ou de retratar sua dureza, como nos exemplos abaixo:
Com nossas mãos
abrir toda gaiola.
Voo de aves.
Corpo inocente:
seu sangue derramado
mancha a História.
São só dois olhos
e cabe todo o céu,
como é possível?
A beleza dessas imagens fugazes, eternizadas pela palavra, coroam o sentido do livro com os gracejos harmônicos que definem o haicai.
Abecedário do corpo imaginado
Escrito por: Mar Benegas
Ilustrado por: Guridi
Tradução: Fábio Aristimunho Vargas
Editora MOVpalavras
2015
REFERÊNCIAS
BENEGAS, M. Abecedario del cuerpo imaginado. 1. ed. Barcelona: A buen paso, 2013.
BENEGAS, M. Abecedário do corpo imaginado. Trad. Fabio Aristimunho Vargas. 1. ed. São Paulo: Mov Palavras, 2015.
POUND, E. Abc da literatura. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2014.
SANTAELLA, L. Matrizes da linguagem e pensamento. 3. ed. São Paulo: Iluminuras: FAPESP: 2005