Blog da Pós

Literatura para Crianças e Jovens

Cada canto, um canto

Confira breve entrevista com o autor Edimilson de Almeida Pereira sobre o processo criativo do livro Cada bicho, um seu canto.

Por Cristiane Tavares e Estúdio Voador

 

Os títulos dos poemas de Cada bicho um seu canto não revelam o nome do animal que aparece em cada texto, o que abre possibilidades para uma leitura metafórica. Você poderia comentar um pouco sobre a escolha dos títulos?
Sua interpretação capta exatamente a minha proposta para os títulos — e para toda a minha escrita. Uma questão que sempre se impõe à literatura para os públicos adulto e jovem é o embate entre a necessidade da literatura de ensinar algo (função didática) ou dinamizar o prazer da apreciação (função estética). Há muito não considero essa questão como um jogo de oposições. Prefiro escrever no entrelugar desse par mínimo (didatismo/esteticismo), pensando em levar os leitores a construírem eles mesmos os significados para o texto que têm à sua frente. Procuro articular jogos de forma e imagem, rumor e silêncio, reflexão e emoção apostando no desejo do leitor de interagir com o texto, interpretando-o a partir de suas experiências pessoais e sociais. Os animais de Cada bicho um seu canto foram escolhidos a partir das características que apresentam.
Por exemplo, a leveza e força do gato; a rapidez e a tensão da vespa etc. O interessante foi perceber como, às vezes, esses traços biológicos servem como metáforas para ações culturais criadas por nós, seres humanos, em sociedade. A intenção dos poemas não é atribuir aos animais atributos morais humanos, como na fábula. O propósito é, segundo uma percepção que temos hoje, demonstrar que participamos todos de um mundo de seres viventes, que têm suas modalidades de linguagem, seus sistemas de comunicação e que interagem entre si. Por isso, o título do livro, ou seja, cada ser vivente (animal ou planta) possui o seu modo de se expressar (o seu canto).

 

Ao escrever para crianças, a relação lúdica com a linguagem se intensifica? Quais relações de semelhança e diferença você observa no seu processo de escrita para públicos distintos (infantil e adulto)?
Quando escrevo poesia, penso em possíveis leitores complexos, que sabem muito sobre os jogos de palavras e de imagens, que vivem, tanto quanto eu, mergulhados nas múltiplas experiências da vida. Considero o princípio de que nossas vidas e mundos são plurais, ricos em significados, alguns mais visíveis e outros menos. Por isso, no ato da escrita, na busca pelos sentidos, não faço distinção entre os públicos porque para “conversar” com eles sou desafiado a entender a complexidade de todas as formas de linguagem e de visões de mundo.

 

Como você vê a relação entre a literatura contemporânea produzida em países da África e a literatura brasileira?
Essa não é uma pergunta de fácil resposta. Cada país africano, assim como o Brasil, apresenta suas especificidades históricas, políticas, econômicas e sociais. São fatores que interferem de maneira decisiva no ambiente de criação e de circulação dessas literaturas. Quando falamos de relação entre elas é importante considerarmos as similaridades decorrentes de fatos como a violência do passado colonial ou seu contraponto, os processos de luta de libertação do colonialismo. Esses aspectos são fundamentais na articulação dessas literaturas, porém, há outros igualmente importantes para o desenho de literaturas que podem ser, ao mesmo tempo, transnacionais e específicas de um território. De modo objetivo, acredito que a circulação das obras — em traduções, concursos literários transnacionais, encontros entre escritores, estudiosos e leitores, políticas públicas de barateamento e distribuição dos livros, fomento às residências literárias nos diferentes países etc. — é importante para termos uma ideia do imensurável patrimônio cultural que subsiste nos países afetados pelo hediondo tráfico de escravizados. Patrimônio esse que aponta, para além dessa herança, outros horizontes sociais e
políticos, baseados no respeito, na democracia e na relação fraterna entre as pessoas de diferentes sociedades.

 

Especialmente no que diz respeito à literatura infantojuvenil brasileira, como você vê a presença de vozes negras atualmente? Acredita que a lei n.10.639, de 2003, contribuiu para dar maior visibilidade a essas vozes?
A lei n.10.639 e seus complementos, que incluíram as literaturas indígenas, são frutos do engajamento de movimentos sociais que pensam num país atento à sua diversidade social e cultural. Essa porosidade social, que decorre também da vontade política de vários agentes (tais como educadores, dirigentes sindicais, políticos, comunicadores, influenciadores, comunidades religiosas e mídias progressistas), é necessária para que tenhamos um ambiente favorável ao surgimento de várias vozes literárias.
No entanto, espera-se que essas vozes não sejam limitadas pelas regras do mercado, que se apropria de temas fundamentais para reduzi-los à condição de produto de interesse momentâneo. Isso é um desafio também para todos os artistas, de modo geral, e para os escritores, de modo particular. O tensionamento entre função social e função estética da literatura é ampliado, mais do que nunca, sob condições em que a busca pela afirmação da diversidade etnicossocial pode se transformar em cerceamento e objetificação das contradições inerentes à experiência estética. Creio que é necessário um debate aberto, profundo e contínuo entre as pessoas que interagem no ambiente cultural do país, a fim de não perdermos de vista a amplitude e a complexidade do patrimônio cultural gerado, há muito, nas difíceis teias da afrodiáspora.

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Entrevista originalmente publicada no Livro da Família, da Editora FTD Educação, e compartilhado com autorização da mesma.

Clique aqui para acessar o material, que inclui uma resenha do livro Cada bicho um seu canto.