Literatura para Crianças e Jovens

Voltemos a falar de amor!

Por Fabiana Chiotolli de Assumpção

Estamos em 2021. Recorrer ao calendário para saber o ano em que vivemos pode ser um gatilho, uma vez que nos faz lembrar os muitos motivos que nos colocam em desespero; as muitas razões para não amar. Mas eu vou falar de amor.

Para conhecermos o amor, primeiro precisamos aprender a responder as nossas necessidades emocionais. Isso pode significar um novo aprendizado, pois fomos condicionadas a achar que essas necessidades não eram importantes. (…) A ideia de que o amor significa a nossa expansão no sentido de nutrir nosso crescimento espiritual ou o de outra pessoa, me ajuda a crescer por afirmar que o amor é uma ação.
(bell hooks)

Essas poderiam ser palavras minhas, mas não são. Quem nos contempla com essa reflexão é bell hooks, uma das mais importantes intelectuais, nascida no sul dos Estados Unidos. É uma mulher negra, artista, escritora, educadora, feminista, que escreveu mais de 30 livros e entre muitas de suas atividades defende que amar é um ato político.

Imagino que, após o término da escravidão, muitos negros estivessem ansiosos para experimentar relações de intimidade, compromisso e paixão, fora dos limites antes estabelecidos. Mas é também possível que muitos estivessem despreparados para praticar a arte de amar. (bell hooks)

A partir das reflexões da autora, considero importante que sejam criados, cada vez mais, espaços seguros para falarmos sobre o amor e esses espaços devem ser garantidos desde à infância, quando muitas e repetidas vezes infâncias são roubadas. Mas como falar sobre o amor e tantas outras subjetividades com as crianças? 

Uma das possibilidades, e a que eu escolheria sem receios, é a leitura do livro A viagem dos Elefantes, escrito e ilustrado por Dipacho e traduzido por Márcia Leite (Editora Pulo do Gato, 2014). Adianto: este livro é pura poesia!

Logo no início, uma afirmação: Viajar é como amar. 

O autor se ampara em uma comparação. E faz tanto sentido que muitas pessoas adultas – que buscam uma resposta sobre o que é o amor – talvez já se deem por satisfeitas logo na primeira página. A escolha da frase não é à toa. A sonoridade das palavras rimadas é acolhida pelos ouvidos dos pequenos leitores tanto quanto a grandeza de seu significado pode ser acolhida por leitores crescidos.

A imagem inicial nos apresenta os protagonistas da história: cinco elefantes e um caminho. Em figuras geométricas, cada um dos elefantes aparenta um formato diferente. Tanto a frase quanto a imagem estão concentradas do lado esquerdo da página. Eles aparecem enfileirados, com os corpos em movimento, seguindo juntos na mesma direção. O caminho se assemelha a um chão de terra e mato. Há um fundo branco que sugere profundidade. Não há margens. Na página da direita, apenas o caminho. É preciso percorrer, portanto. Ao prosseguir, vemos que os elefantes ganharam o lado direito da página. Houve, então, um deslocamento. Iniciaram a viagem.

As frases são breves, simples e diretas, lembrando a maneira cuidadosa e paciente que muitas pessoas experientes utilizam para ensinar algo às crianças. E também são próprias de certa poesia que, com economia verbal e precisão, pode nos mover mediante a emoção, nos (co)mover.    

Comparar o amor a uma viagem é como utilizar um desenho para descrever um objeto, na tentativa de facilitar e expandir a comunicação. Permite que o imaginário e o corpo do leitor sejam preenchidos por sensações: horizonte, novidade, deslocamento, medos, incertezas.  

Chegar a um lugar do qual se gosta e passar um tempo, estacionar para apreciar a vista, experimentar um novo sabor. Essas são algumas das delícias de quando a gente encontra o que procura ou se depara com o acaso que satisfaz. Há também as viagens que não nos garantem felicidade, que trazem mais dores que alegrias, então a gente quer voltar rápido pra casa. Viagens em que a gente se perde por caminhos obscuros, tortuosos, ou que exigem recalcular a rota, voltar ao início e começar outra vez. 

As ilustrações engrandecem o texto. Ora os elefantes aparecem pequeninos e assustados entre outros animais que encontram pelo caminho, ora estão amontoados, em descanso, aproveitando o lugar. E também perdidos, momento em que nos deparamos com um desenho em traços simples, para nos mostrar o medo que estão sentindo. Vemos apenas os seus olhos, ou os olhos de qualquer um de nós em situação parecida: assustados, escondidos atrás das árvores, num caminho escuro. 

O uso da expressão às vezes é recorrente e imprime ritmo e musicalidade à narrativa:

Às vezes é preciso ir embora.
E às vezes…
Começar tudo de novo.
Às vezes você se perde.
Em outras, você se despede.
(…)

A reiteração da expressão também reforça a ideia de que não há certezas, nem exatidão diante dos acontecimentos da vida, revelando um movimento constante, reforçado pelo projeto gráfico, já que, a cada página virada, revela-se algo de novo que, às vezes, pode acontecer.

A viagem dos elefantes é mais um dos livros do escritor e ilustrador colombiano Diego Fancisco Sanches Rodrigues, conhecido como Dipacho, que nos dá condições de aproximar as crianças de assuntos profundos e complexos como o amor. É ele também quem assina o livro Apesar de tudo (Companhia das Letrinhas, 2018),outra história de amor, separação e superação das adversidades. “São histórias que nascem no coração, passando pela barriga e pela cabeça”, como diz o autor. 

Embora o livro não seja classificado como poesia na ficha catalográfica, em sua composição conseguimos observar o poético. A rima nos guia por toda a história, mantendo um ritmo brando, compassado, técnica que desperta no leitor a expectativa de continuidade, uma vez que se encontra familiarizado com o movimento. Essa cadência, no entanto, é abruptamente interrompida e a estrutura do poema se desfaz por completo, encerrando o texto. Ao mesmo tempo em que o leitor é lançado no espaço é também amparado pela bonita imagem que se apresenta e o salva de uma queda.

Como diria Octávio Paz, “a poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. (…) A atividade poética é revolucionária por natureza (…) A poesia revela este mundo; cria outro.” Frente à beleza da viagem proposta com as ilustrações é certo que as crianças se entregarão ao mergulho. Em situação de mediação, recomenda-se uma leitura vagarosa, respeitando as entrelinhas e o percurso de cada leitor, leitora.

O silêncio tão bem colocado entre uma página e outra pode ser oportunidade de ver surgir novos poemas sobre o amor.

A viagem dos elefantes
Escrito e ilustrado por: Dipacho
Tradução: Márcia Leite
Editora Pulo do Gato
2014

REFERÊNCIAS

DIPACHO. A viagem dos Elefantes. Editora Pulo do Gato. 1ª edição, 2014.
ANDRUETTO, M. A leitura, outra revolução. Edições Sesc São Paulo. 2017.
HOOKS, B. O amor como prática da liberdade. Disponível em: https://medium.com/enugbarijo/o-amor-como-a-pr%C3%A1tica-da-liberdade-bell-hooks-bb424f878f8c. Acesso em 25 out. 2021
HOOKS, B. Vivendo de amor. Disponível em https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/. Acesso em 25 out. 2021.
PAZ, O: O arco e a lira. Disponível em https://www.academia.edu/35222871/O_arco_e_a_lira_octavio_paz. Acesso em 25 out. 2021

Fabiana Chiotolli de Assumpção

Formada em Letras e pós-graduanda em Literatura para Crianças e Jovens, no Instituto Vera Cruz. Desenvolve trabalhos voltados à formação de leitores e educação não-formal em equipamentos culturais e instituições localizadas em território de vulnerabilidade social.