O racismo no Brasil é estruturante das relações sociais que criam desigualdades e abismos, conforme pontua o jurista Silvio Almeida. Um sistema que oprimia e oprime, negando o direito às pessoas negras de ter sua ascensão, de conhecer e reconhecer-se na história como sujeitos. Em seu livro Racismo Estrutural, Silvio Almeida coloca:
Consciente de que o racismo é parte da estrutura social e, por isso, não necessita de intenção para se manifestar, por mais que calar-se diante do racismo não faça do indivíduo moral e/ou juridicamente culpado ou responsável, certamente o silêncio o torna ética e politicamente responsável pela manutenção do racismo. A mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias ou com o repúdio moral do racismo: depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas (ALMEIDA, 2020, p. 52).
Para o desenvolvimento de uma educação antirracista é necessária a desconstrução da ideia de superioridade branca e da inferiorização da população negra e indígena, conforme defende o professor e antropólogo Kabengele Munanga. Ele ressalta ainda que, se são as práticas educativas que reforçam discriminações e estereótipos, também será por meio delas a sua desconstrução. Assim, neste curso de pós-graduação, é objetivo estruturante a compreensão da relação entre a ideia de superioridade e inferioridade, processo de colonização, escravidão, racismo, exploração, violência e o genocídio de povos em diversos momentos históricos.
Em que pese não ser um curso de História, é importante sublinhar que o conhecimento histórico é fundamental para a constituição de uma sociedade antirracista.
O mito da democracia racial, utilizado e reforçado por ações e políticas do Estado brasileiro, espalhou, a partir da década de 1930, a ideia de um Brasil sem diferenças culturais, da miscigenação, formado pela “mistura” pacífica do branco, negro e indígena, em que todos seriam iguais e valorizados perante a nação. No entanto, o processo de colonização ocorrido no território brasileiro e suas consequências, como a escravidão indígena e africana, a violência e a exploração, marcaram o choque entre os diversos povos e suas culturas resultante de relações de poder assimétricas, aspectos esses que foram ocultados pela historiografia oficial e pelos livros didáticos utilizados nas escolas brasileiras.
Durante o século 20, o país que se dizia cordial, por meio de uma política racial incentivou a imigração europeia e asiática no território brasileiro, oferecia concessões que nunca foram dadas aos negros, que aqui já trabalhavam desde o século 16. As vantagens de acesso à terra e trabalho a esses imigrantes tinham como objetivo o “branqueamento” da população do país.
Os movimentos negros nos mostraram que o mito de um país cordial acabou por esconder práticas sociais discriminatórias, além de estimular práticas educativas homogeneizadoras de uma cultura única, ou a cultura das classes dominantes, invisibilizando ou silenciando as outras. Essa visão monocultural construída a partir de valores eurocêntricos se fez presente nos livros didáticos durante décadas, fornecendo informações e conhecimentos equivocados sobre os povos indígenas e negros que formaram o Brasil.
Antes da colonização, havia uma grande diversidade de povos com diferentes costumes, línguas e tradições, e não um único povo. O que sabemos sobre esses povos originários? Quais são os desafios e perspectivas para o ensino da história e cultura indígena no Brasil? Como a história e a cultura indígena são referidas no livro didático hoje? A diversidade de povos indígenas é estudada a partir de qual perspectiva atualmente?
Da mesma maneira ocorreu com os povos africanos, que foram sequestrados de diferentes regiões do continente. Também eles não constituíam, portanto, um único grupo cultural, como apresentados nos livros didáticos durante muito tempo, mas eram originários de povos com inúmeras diferenças culturais. Quem eram os africanos que vieram para cá? O que faziam? Qual o papel dos negros para o desenvolvimento do Brasil? O que sabemos sobre o continente africano antes da escravização? Quantas são as Áfricas contidas em África? Como é a vida na África contemporânea? Qual é o papel e o lugar destinados à África no entendimento da história da humanidade e quais as representações mais recorrentes veiculadas sobre os africanos nos livros escolares de história?
Essa compreensão histórica, geográfica e social torna-se fundamental para repertoriar conceitual e didaticamente os professores para que construam e desenvolvam propostas pedagógicas em que a história do Brasil seja estudada também da perspectiva dos povos negros e indígenas e não apenas a partir da visão do branco europeu. Romper com uma visão histórica em que não houve espaço para negros e indígenas é romper com as ideias estabelecidas pela branquitude, pressuposto fundamental para o desenvolvimento de uma educação antirracista.
A partir do entendimento dos conceitos de epistemicídio, colonialidade e contra colonialidade, analisaremos os impactos, no currículo e nas práticas do cotidiano escolar, da invisibilização dos conhecimentos e saberes produzidos por povos negros e indígenas ao longo da história do Brasil. A relação entre hierarquização de saberes, classificação racial da população, privilégio social e privilégio epistêmico será problematizada de modo a contribuir para a elaboração de critérios de seleção de materiais didáticos e para o desenvolvimento de práticas escolares que possibilitem a construção da educação antirracista.
Arroyo (2011, p. 261) lembra-nos que a escola é o lugar para “saber de si”, portanto, ele defende a pluralidade na organização do currículo e o direito que todos possuem de lidarem com seus conteúdos e pertencimentos históricos e culturais no âmbito da escola. Nes se sentido, o fortalecimento da identidade do sujeito está apoiado na desconstrução de um olhar eurocêntrico e colonizado e na construção de conceitos que recuperem as contribuições da África e de seus sujeitos para a humanidade e para a identidade nacional, ampliando o repertório dos estudantes.
Na educação antirracista, o fortalecimento de identidades é, portanto, um princípio, o qual pressupõe a compreensão de que não podemos homogeneizar os conteúdos escolares tomando por base apenas uma perspectiva étnica, uma “única história”. De acordo com Arroyo (2011), Nilma Lino Gomes (2007) e Sacristán (1998), a diversidade étnica nos currículos implica debater fenômenos históricos, políticos, econômicos e sociais do etnocentrismo e do racismo. Tratar da diversidade e da diferença implica posicionar-se contra os processos de colonização e dominação.
Neste curso, ofereceremos possibilidades de análises sobre como, nesses contextos, diferenças foram hierarquizadas e tratadas de forma desigual e discriminatória. A proposta é que os professores e demais profissionais da educação entendam o impacto objetivo dess es processos na vida dos sujeitos sociais e no cotidiano da escola, portanto, analisaremos o currículo como um território de disputa, que, na perspectiva de uma educação antirracista, precisa ser reivindicado como território de um saber multicultural.
Daí, a necessidade dos alunos de pós-graduação entenderem a criação das leis 10.639/03 e 11.645/08 como resultado da luta dos movimentos negros e indígenas no Brasil, respectivamente. Por meio da lei 10.639, tornou-se obrigatóri a a inclusão de conteúdos referentes à história da África e cultura africana e dos afro-brasileiros nos currículos das instituições de ensino público e particulares da educação básica e, nas universidades, a obrigatoriedade para os cursos de Licenciaturas. Posteriormente, visando ampliar a promoção da igualdade racial no país, é criada a lei 11.645/08, que inclui as questões indígenas, tornando, então, obrigatório o ensino em escolas e universidades da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena.
Ness e contexto, faz-se necessário também, ao longo do curso, a discussão sobre o campo lexical que usamos em sala de aula para debater conjunturas históricas, de modo a garantirmos o olhar crítico para palavras e expressões que amenizam a violência presente na história do nosso país e na história da humanidade e naturalizam o racismo. É recorrente, por exemplo, dizermos “os europeus descobriram o Brasil”, desconsiderando, portanto, a presença de mais de mil povos que falavam mais de mil línguas diferentes. Também dizemos “ escravos africanos ” em vez de falarmos “ pessoas escravizadas”, entre outros exemplos que evidenciam a naturalização das diferentes formas de violência.
Outro objetivo estruturante neste curso de pós-graduação é o entendimento da invisibilização como construção social, estruturada pelas dinâmicas de racismo existentes no Brasil. Para o desenvolvimento de uma educação antirracista, é fundamental entender que a invisibilização não é uma ação inofensiva ou ingênua, mas uma estratégia política que nega o reconhecimento aos sujeitos invisibilizados, gerando consequências socioeconômicas e culturais.
Na escola, a invisibilidade pode ser manifestada objetivamente pela inexistência da presença negra e indígena e de seus temas nos currículos e nos materiais didáticos, bem como no funcionamento e organização dos vários espaços que a compõem. Também ocorre subjetivamente, quando tensões decorrentes d e relações étnicas e raciais não são abordadas por meio de intervenções pedagógicas. Assim, a partir da problematização de situações cotidianas reais, os alunos do curso de pós-graduação serão provocados a identificar as diversas formas de invisibilização que ocorrem em escolas públicas e privadas, com vistas à construção de propostas de intervenção e de mudanças na perspectiva de uma educação antirracista.
A questão da representatividade torna-se, portanto, outro tema importante. Analisaremos as representatividades negra e indígena em todos os níveis da escolaridade, a partir de perguntas como: onde estão os negros e indígenas nas instituições de Ensino Básico e Ensino Superior? Em que medida as crianças da Educação Infantil têm acesso a bonecas e bonecos negros e indígenas? Os brinquedos que existem na escola valorizam as temáticas negras e indígenas? A quais representatividades negras e indígenas as crianças têm acesso por meio dos livros de literatura? Os livros didáticos usados no Ensino Fundamental e Médio contêm quais imagens de pessoas negras e indígenas? As imagens mostram a perspectiva da resistência ou prevalece a perspectiva da marginalização? Os vídeos, documentários e as músicas usadas no trabalho pedagógico têm intencionalmente uma representatividade positiva de pessoas negras e indígenas?
A partir da análise de dados sociais e econômicos que evidenciam a desigualdade entre brancos e negros no Brasil e à luz do estudo das políticas de ações afirmativas, os alunos da pós-graduação, construirão, ao longo do curso, repertório teórico e conceitual para compreenderem as relações entre os conceitos de branquitude, privilégio branco, colorismo e passabilidade e para identificarem como se expressam nas estruturas sociais no Brasil.
Compreendemos que é papel da escola desenvolver concepções educativas e estratégias pedagógicas que permitam a interação entre sujeitos com identidade culturais diversas, favorecendo, dessa forma, o enfrentamento de conflitos e a superação de estruturas socioculturais geradoras de discriminação étnico-racial e exclusão.
Assim, esperamos que este curso contribua para a formação de professores e demais profissionais da educação para atuarem na construção de uma educação antirracista.
Bibliografia básica
ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
ARROYO, Miguel G. Currículo e território de disputa. Petrópolis: Vozes, 2011.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP 003/2004, de 10 de março de 2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana Brasília: MEC, 2004.
GOMES, Nilma Lino (et.al). Indagações sobre currículo: diversidade e currículo. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007.
MUNANGA, Kabengele. Origens africanas do Brasil contemporâneo: histórias, línguas, culturas e civilizações. São Paulo: Global, 2009.
SACRISTÁN, Gimeno; GÓMEZ, Péres A.I. Compreender e transformar o ensino. 4ª ed. São Paulo: Artmed, 1998.