Fotografia de Manuela Rodrigues
Sou Carmem Lucia de Lima e, apesar do nome duplo, todos me chamam de Carmem. Eu tenho 47 anos, nasci no dia 6 de março de 1972 em São Paulo, capital, onde sempre morei.
Tenho oito irmãos, seis homens e três mulheres, sendo que um por parte só do meu pai e uma irmã portadora de uma síndrome. Assim como eu, todos nascidos em São Paulo.
Diferente da maioria das crianças de hoje em dia, passei minha infância morando em um sítio – apesar de parecer afastado, fica no Jardim Ângela, zona Sul da capital. Gostava muito de brincar com meus irmãos e primos. Brincávamos de pular corda, de carrinho de rolimã, balanço, bolinha de gude, pião e de subir em árvores – brincadeiras raras de se ver atualmente. A minha brincadeira favorita era pular corda.
Nesse sítio aconteceu algo que me marcou e nunca mais esqueci. Tenho a impressão que ficou “colado” em minha memória por muito tempo. Lá, tinham muitos poços, pois não tínhamos água encanada. Um dia, um dos meus irmãos subiu nas minhas costas e, como eu não estava prestando muita atenção, levei um ”baita” susto, impulsionei para frente jogando meu corpo para trás. Por causa disso, ele se desequilibrou e acabou caindo dentro do poço. Como o poço tinha bastante água e era muito fundo, precisaram chamar o Corpo de Bombeiros para resgatá-lo. Naquele momento senti um medo terrível de perder meu irmão querido, mas felizmente ele não se machucou. No entanto, “quem se machucou fui eu”, fiquei com tanto peso na consciência que até tive que fazer terapia porque se ele tivesse morrido, a culpa seria toda minha. Hoje esse trauma já foi superado, pois entendi que foi apenas um acidente.
Estudei até o 5º ano numa escola municipal que se chama EMEF Professora Carolina Renno Ribeiro Oliveira e quanta coisa aprendi! Minhas matérias preferidas eram Ciências e Geografia. A escola era muito boa, principalmente sua diretora Azizi, que implantou um projeto para as meninas e meninos. Para as meninas a partir dos 9 anos, eram dadas aulas na sala de Ciências sobre orientação sexual para entender o que acontece com o corpo, o que muda, os cuidados que têm que ter. Já para os meninos, as aulas eram sobre Educação Moral. Em relação ao projeto, aconteciam semanalmente encontros com a equipe da Johnson’s que nos orientava sobre higiene pessoal. Até hoje tem esse projeto na escola que fica no Jardim Ângela.
A diretora, que é avó do famoso ator Fábio Assunção, era muito rigorosa. Tinham brincadeiras no recreio que as meninas não podiam se misturar com os meninos, o que não se vê mais atualmente. Pensando naquela época, acho que deu certo, gostava desse funcionamento.
Quando criança, eu tinha o sonho de ser bailarina e professora. Bailarina não deu certo. Minha mãe dizia que eu tinha pernas muito grossas, o que era, na verdade, uma desculpa. Ela não queria me dizer que não tínhamos condições financeiras para pagar as aulas, porque, diferente de hoje em dia, não eram todos que tinham acesso, por serem muito caras. Além disso, se ela realizasse meus sonhos, também teria que fazer o mesmo com meus irmãos.
O sonho de ser professora também não deu certo. Meus pais se separaram, minha mãe teve dificuldades e precisou sair de sua própria casa. Por isso, aos 11 anos, abandonei a escola e fui trabalhar em casa de família como doméstica e, infelizmente, nunca mais tive oportunidade de voltar aos estudos.
A minha adolescência foi muito alegre e até dá “gosto” relembrar. Adorava dançar e ir às baladas com meus amigos – principalmente nas rodas de samba. Era muito festeira e meus gêneros musicais prediletos eram rock, samba e black music. Sinto muita saudade daquele tempo.
Meu primeiro emprego “de verdade” foi no Carrefour – fui caixa e estoquista. Trabalhei lá durante seis anos e o melhor de tudo era ter carteira assinada. Mas o pior é que “ralava” muito, pouco me alimentava e consequentemente uma anemia muito forte me levou ao RH da empresa para fazer um acordo. Tive que “abandonar” o trabalho para poder me tratar.
Engravidei muito jovem, aos 19 anos. Até que o grande dia chegou! Aos 20 anos nasceu meu primeiro filho, Marcus Vinícius. Nesse momento – de alegria – nada podia me fazer parar de sorrir. Esse mesmo sentimento ressurgiu desde que esse menino, agora com 27 anos, me deu “outro filho”, meu neto Bernardo.
Infelizmente, a vida não é feita apenas de momentos alegres. Depois de me divorciar, meu marido – ou melhor, ex – foi assassinado. Fiquei triste, mas a vida segue. Criei meu filho sem pai, mas com a ajuda da minha mãe.
Passado algum tempo, minha história continuou e me mostrou um novo caminho. Então, casei-me novamente, depois de dezessete anos, e tive mais um filho, Davi, que hoje tem 10 anos. Ele estuda em uma escola localizada na Brasilândia e está no 5º ano.
Meu atual marido, Maurício, com quem estou há 11 anos, trabalha como estoquista, mas sua profissão é operador de caldeira, algo que exige muita responsabilidade. É muito difícil, porque, se “vacilar”, você pode por uma empresa inteirinha abaixo. Em um determinado dia, alguém que trabalhava com ele, no turno anterior, colocou carvão em uma das caldeiras e, como não havia avisado, ele colocou mais carvão e, com a pressão, as brasas ferventes, como um vulcão, espirraram queimando suas pernas. Um horror!!!
Como muitos sabem trabalho gera dinheiro e para ganhar a vida evidentemente precisamos trabalhar. Eu, por exemplo, não fico desempregada, onde abrir uma vaga eu vou, nem precisa ser do meu setor. Tive outros empregos nos shoppings Ibirapuera e Paulista e no hospital na área de limpeza e em uma fábrica de linhas. Mas minha real paixão está na cozinha, adoro fazer massa! Trabalhei numa cantina e confeitaria. Na realidade, minha paixão por culinária é tanta que até abri uma pastelaria, mas não deu muito certo por conta do aluguel, que era caro. Faço bolo doce, minha paixão é confeitar, meu verdadeiro talento é fazer doces.
Antes de chegar no Vera, trabalhei no CCJ, que é um movimento social do governo que atende jovens pobres, moradores de rua, viciados em drogas para “reeducá-los” e tratá-los para que tenham uma vida melhor. Tem até shows de artistas famosos. Esse espaço é como se fosse uma escola, mas a cada eleição é mudado o partido e, com isso, muda também a direção e funcionários. Com essa rotatividade, a qualidade das ações principais “caíram” muito, pois os diretores passaram a arrecadar o dinheiro para si, esquecendo dos cuidados com os frequentadores.
Perdi minha mãe no mês de novembro e dois dias depois fui forçada a trabalhar. O diretor da CCJ disse para eu pegar um balde de água e uma esponja para esfregar a escada, pois assim esqueceria de minha mãe. Fiquei muito chateada. Discutimos muito e duas semanas depois fui demitida. Senti um alívio naquele momento porque tinha ficado com muita raiva de não poder chorar minha perda e nem apoiar minha irmã que é portadora de síndrome.
Cheguei no Vera por meio de um site de empregos. Estava desempregada há 3 meses, ganhando o seguro-desemprego. Fui contratada a quase 1 ano. Eu estou muito feliz, principalmente por lidar com “as coisinhas bonitinhas que têm no Vera, gosto muito de me envolver com as crianças” mesmo sendo bagunceiras e desordeiras. Trabalho oito horas por dia. Entro meio-dia e saio às nove da noite com uma hora de almoço.
Atualmente meu sonho é abrir a minha confeitaria porque amo cozinhar, principalmente doces, como bolos e cupcakes. Poderia ser meio dia – trabalhar na confeitaria de manhã e à tarde na escola. Outro sonho é ver meus netos e filhos crescerem e se formarem em alguma área.
Sigo lutando pelos meus sonhos e assim a vida continua. Tenho muito para viver e aprender. Desejo ter boas memórias para contar e nunca parar de sonhar.
2 Comentários
Rafaela farhat de Carvalho
1 de abril de 2020em 14:06Que legal que quer ter sua confeitaria!!!
Laura Coutinho Lafraia
27 de abril de 2021em 15:25Eu adorei a história da vida dela é muito linda cheia de emoções e sonhos. Achei muito legal que ela tenha conseguido uma coisa que ela gostou, espero que ela consiga abrir a confeitaria e poder trabalhar no Vera e lá.