Única para mim, diferente para muitos

Fotografia de Paula Dellaquia

 

Minha história é única, assim como todas as histórias, como todo mundo.

Eu não nasci em São Paulo, sou migrante. Venho de um lugar desconhecido por muitos de vocês, chamado Fazenda Piaba, que fica no interior da Bahia. Esse lugar é um pequeno vilarejo, que está a 250 km de Salvador, a linda capital baiana. Sim, sou baiana, mas meu coração já é um pouco paulistano.

Meu nome é Cláudia Oliveira Mota, mais conhecida como Claudinha. Nasci em 6 de janeiro de 1982, dia de Santos Reis, que também é conhecido como “dia da gratidão”. Tenho muita sorte em nascer nesse dia, porque é uma data muito importante na minha região.

Ilustração de Guilherme Corrêa e Souza

Um fato interessante, diferente de muitas pessoas, principalmente as que moram em cidades grandes ou capitais, é que só fui registrada após doze dias do meu nascimento, em 18 de janeiro. Sabe por quê? Onde eu morava não tinha um cartório de registros e meu pai foi adiando a ida na cidade para me registrar.

Somos oito filhos, três mulheres e cinco homens. Meus pais moram na Fazenda Piaba até hoje e isso é maravilhoso, porque sempre posso voltar para rever o lugar onde nasci.

Eu morava numa região muito pobre, mas, mesmo assim, tive uma maravilhosa infância. Estudei em uma escola com uma única professora para todos alunos – imagino a dificuldade que ela passou, tendo que ensinar a tantos alunos com idades e aprendizagens diferentes –, passei lá muitos anos e não aprendi muitas coisas: só a ler e a escrever pequenos textos, ou seja o básico do básico. Nessa época, o único livro que eu tinha era a cartilha Caminho suave e um dicionário que me ajudava a entender as palavras e seus significados. Quando não podíamos ir com o fusca do meu pai — na época ter um carro onde eu morava era muito raro –, íamos a pé. As aulas começavam a uma hora da tarde; quando eu ia a pé, saía de casa às 11h00 da manhã para dar tempo de chegar no horário. A primeira escola é sempre muito importante para toda e qualquer criança, e eu não fui exceção.

Meu dia a dia era assim: acordava bem cedo para ir para a escola, assim que voltava para casa, almoçava, depois tinha que fazer algumas tarefas domésticas e finalmente conseguia ter um tempo livre para fazer o que quisesse.

Minhas brincadeiras preferidas eram: pular corda e esconde-esconde. Gostava muito de brincar de “Sete Pedras” – onde você tinha que derrubar as pedras e acertar a bola no outro.

Adorava quando meus avós iam à minha casa todas as noites para contar histórias. Como moravam em frente a nossa casa, sempre esperávamos por eles. Em noites de lua cheia, ouvíamos histórias de tradições orais—contadas de boca em boca. Em noites escuras, eram histórias de terror como as de lobisomem, mula sem cabeça, onças, macacos e também alguns contos de fadas. Era muito divertido ver a família reunida e cada momento era único e inesquecível.

Quando completei oito anos, ganhei uma boneca que marcou muito a minha infância, pois não tinha muito dinheiro e só brincava com bonecas de barro e de espiga de milho.

Ilustração de autoria anônima

 Em um certo dia, o meu pai voltou de viagem e para o meu grande espanto ele trouxe três bonecas: uma para mim e as outras duas para as minhas irmãs. Dei o nome de Gabriela para a minha tão sonhada boneca. Gostava tanto, mas tanto, da Gabriela, que até parei de jogar o jogo das Sete Pedras por um tempo. Fiz um batizado das bonecas de tão empolgada que estava. Pedi para minha mãe costurar três vestidos – um para cada boneca –, convidei várias amigas para o batismo e todas vieram, cada uma com sua boneca. Molhamos a cabecinha das nossas ”filhinhas” como se fosse um ritual de verdade. Minha mãe fez um bolo maravilhoso e, depois da celebração na água, era hora de comemorar. Comemos o bolo, brincamos muito e conversamos a tarde inteirinha até o céu cair na boca da noite. Foi o dia mais feliz da minha vida.

Eu tinha um objeto de estimação que era um prato todo pintado e eu só comia nele. Todas as pessoas têm uma caneca de estimação, eu tinha um prato. É uma pena que não o guardei, porque era um objeto que até hoje me traz muitas lembranças da minha casa e da minha infância.

Aos finais de semana, eu ia com toda minha família no estádio de futebol porque não havia opções de passeios e aos domingos nós íamos à missa. Na saída da missa queríamos ficar na cidade, mas meu pai não deixava e voltávamos todos juntos para casa.

Havia muitas emoções na minha vidinha pacata de criança nascida em um lugar tão pequenininho, mas, mesmo assim, tinha o sonho de mudar para uma cidade grande, que se realizou quando completei 14 anos.

Fui morar com a minha madrinha, que tinha uma loja em Barrocas – cidade bem maior do que meu vilarejo. Trabalhava na loja, recebia um salário de oitenta reais e à noite ia para a escola. No caminho para escola, nós sempre passávamos na casa da nossa prima, foi lá que soubemos da morte dos Mamonas Assassinas, que por sinal foi no ano de 1996. De acordo com a TV, o avião ficou sem gasolina e bateu em um morro. Fiquei tão chocada quanto na morte de Ayrton Senna – neste ano completou-se 25 anos sem o maior piloto da história do nosso país. Foram fatos que marcaram a minha adolescência.

Minha primeira paixão foi o Murilo, amigo do meu primo; o conheci na escola, mas não namoramos, só ficamos – ficar significa sair sem compromisso. Meu pai não estava tão contente com essa situação, pois não gostava muito dele. Mesmo a família sendo contra, a gente se encontrava escondido. Isso durou quatro anos.

Quando entrei na adolescência, senti muitas mudanças, já não gostava mais de bonecas e só queria sair de batom, mas eu tinha que levar escondido na mochila, pois o meu pai não gostava.

Tinha quatro amigas que eram muito próximas. Eram importantes demais para mim! Quando estávamos juntas, me sentia acolhida, porque era um momento único onde eu podia desabafar.

Tive uma perda muito impactante quando tinha 16 anos, que foi a morte de um grande amigo muito querido. Ele era namorado da minha melhor amiga e sua morte me entristeceu muitíssimo. Quando somos adolescentes, não pensamos muito em perdas e quando acontece temos que encarar a realidade, querendo ou não!

Ilustração de Guilherme Maluf

Terminei o colegial, fiquei um tempo sem estudar e logo depois comecei a cursar pedagogia. O programa “Escola da Família” financiou meu curso. Foi aí que comecei o meu primeiro contato com as crianças. Uma memória que tenho desse trabalho foi uma criança carente que me marcou muito. Com essa convivência descobri que ele adorava colorir desenhos. Aos sábados ele esperava ansioso pela minha chegada. Até hoje, quando passo por lá, ele corre ao meu encontro e diz que sente saudade.

Meu primeiro emprego formal foi no ano de 2001. Era uma empresa que fabricava e embalava produtos ortopédicos, trabalhei na linha de produção. Era um trabalho bem desgastante, tinha que olhar os produtos e ver se estavam sem defeitos para embalá-los. O meu patrão – Senhor Celso – era um português muito exigente, mas bem-humorado. Ele me chamava a atenção se eu mandasse um produto sem revisão. Eu não aceitava essa “bronca” e sempre brincava com ele dizendo: “Cadê o elogio dos 99 que eu acertei, Senhor Celso?”.

Meus outros trabalhos foram em uma empresa de motoboy, uma loja de roupas e fui dona de uma loja de cama, mesa e banho. Foi aí que soube que no Paraguai esses produtos eram muito mais baratos do que aqui em São Paulo. Convidei uma amiga que trabalhava em uma floricultura para me acompanhar nessa aventura. Fomos de ônibus. Nosso plano era chegar na quinta de manhã e voltar na noite do mesmo dia. Chegando lá, nós compramos várias coisas, eu comprei uns dez cobertores.

Sabe aquelas viagens que você acha que têm tudo para dar certo? Não foi bem assim… Enquanto nós estávamos voltando, teríamos que passar pela alfândega. Muitas pessoas ficaram com medo de ter suas mercadorias apreendidas e desceram no meio da estrada. Paramos, eu saí do ônibus e vi policiais federais. Eles pediram as notas fiscais dos produtos, mas no Paraguai, por venderem mais barato, não dão nota fiscal. Desconfiaram de todos e confiscaram as mercadorias de todos os passageiros. Na rodoviária, já para voltarmos para São Paulo, pensamos que não poderíamos voltar de mãos vazias. Resolvemos ficar, dormimos ao relento com muito medo de sermos assaltados e, no dia seguinte, fomos para Foz do Iguaçu e compramos tudo de novo. Perdi minhas economias de meses para fazer essas compras. Foi uma experiência muito desgastante, jamais faria de novo e não recomendo para ninguém.

Nessa época, conheci meu marido, que trabalhava com meu cunhado. Quem nos apresentou foi a minha irmã Lu – até hoje, desconfio que esse encontro foi planejado. Claro que, quando ele era noivo, eu não quis saber dele. Quando ele terminou o relacionamento, me procurou e começamos a namorar. Ficamos dois anos namorando, estava tudo muito bom e resolvemos morar juntos. Temos uma filha de sete anos que é uma grande leitora. Ela estuda em uma escola particular do nosso bairro, que é próximo ao Autódromo de Interlagos.

Comecei a trabalhar no Vera Cruz no ano de 2016. Tudo aconteceu porque conheci a Paula Takada – hoje professora do 4o ano – na faculdade UNINOVE. Ela me contou que surgiu uma vaga de assistente de biblioteca e perguntou se eu gostaria de trabalhar em uma escola. Fiz a entrevista e fui selecionada. Minha alegria foi imensa, porque começaria uma nova etapa na minha vida profissional.

Tudo mundo tem uma hora preferida do dia ou da rotina, não é? A minha são os trinta minutinhos do recreio, porque tenho muito contato com os alunos. Ganho abraços e conversamos sobre livros e isso é maravilhoso!

Como trabalho em uma biblioteca, aproveito para dar uma bisbilhotada no acervo. Um dos meus livros preferidos é Meu pé de laranja-lima e Minha vida de menina. Meus autores preferidos são: Eliane Brum, Manoel de Barros e Mia Couto.

Embora trabalhe com livros, nunca escrevi um, mas já escrevi um diário na minha adolescência e contava histórias de tradição oral, aquelas que são passadas de boca em boca. Quem sabe ainda escreverei um livro? Quem sabe se a partir das minhas memórias me animo para escrever? Vocês serão meus incentivadores.

Isso é outra história…

Tenho muitos sonhos, um deles é terminar de pagar a compra da minha casa e poder voltar a estudar e fazer pós-graduação.

Quando olho para trás, me sinto imensamente feliz com tudo que alcancei na minha vida.

 

Textos: Alunos 5o. ano F

Deixe seus comentários

Seu e-mail não será publicado. Campos obrigatórios estão marcados com *