Um mar de histórias

Ilustração de Marianna Dias

Fotografia de Ana Eliza Toledo

 

Oi, olá. Meu nome é Tatiane, mas podem me chamar de Tati. Em 23 de setembro farei 32 anos. Hoje em dia moro com os meus pais. Faz 10 anos que voltei a morar com eles na mesma casa onde nasci, em Pirituba. Esse ano decidi aceitar o pedido de casamento do Rafael. Agora somos noivos.

Um belo pôr do sol me deixa emocionada. Aprecio a natureza, por isso, o aquecimento global me preocupa. Embora não saiba o quanto isso é verdade, sinto a diferença nas ondas do mar. Fico chateada com a questão da violência, principalmente em relação às crianças. Tenho receio do poder da tecnologia: “ela está comandando o mundo e não as pessoas que a estão comandando”. Quem não quiser acreditar tem toda a liberdade de discordar.

 Na juventude queria mudar o mundo, por isso me formei em Pedagogia. Sou professora do Ensino Fundamental II da Escola Vera Cruz. Gosto de todas as matérias. A preferida é Estudos Sociais. Eu faço o meu trabalho para os outros, por isso tenho que me esforçar – “fazer direito”. No ano em que entrei nessa escola estava cheia de ânimo, porém, perdi alguém muito importante na minha vida: minha avó Severina. Naquele momento, senti como se a tristeza estivesse apertando meu coração, impedindo meu sangue de correr pelas veias. Até hoje esse fato não saiu da minha lembrança.

Ela cuidou de mim quando pequenina, na época em que minha mãe teve minhas irmãs, Juliane e Liliane. Sou a irmã mais velha, temos um ano e meio de diferença. Costumávamos passar as férias juntas na praia. Recordo do bolinho que ela preparava: feito de arroz, feijão, farinha de rosca, tudo amassado com um tempero “natural” – a terra que ficava em suas mãos nos muitos momentos que cuidava de suas plantas com prazer. Guardo também na memória seu apoio e confiança – sua voz me aquecia mais que todos os cobertores do mundo – ao ser contratada pelo Vera. Outro desejo que tinha era me ver casar – infelizmente não deu tempo.

Quando pequena também me chamavam de Tatinha. Mas nem todas as emoções que me lembro foram tão boas ou gostosas: Olivia Palito e Pau de Vassoura foram apelidos que fizeram parte da minha infância, mas não me agradavam. De fato, eu era – e ainda sou – magrela e os meninos aproveitavam para zombar o tempo inteiro, mesmo assim brincávamos na rua até minha mãe chamar para tomar banho e jantar – “tomar banho era difícil”. Uma coisa que eu gostava era fazer piquenique e outra era pular fogueira.

Certo dia, andando na garupa da bike, bobeei, coloquei o pé na roda – que emoção! pé ante pé, o coração aos pulos – e o quebrei – nunca mais esqueci a sensação daquele momento. Pode ser que para muitos isso seja uma bobagem, pois toda criança se machuca, mas para mim foi um fato marcante de minha infância.

Ilustração de Joaquim Di Segni

Quando tinha dois anos e meio, uma nova integrante chegou à família: Kita, uma poodle branquinha, peludinha e muito ciumenta. Quem se aproximava do papai levava uma mordida no calcanhar, pois era muito apegada a ele. Outra experiência marcante com meu pai foi ele me ensinando a nadar de um jeito peculiar: me jogando na piscina. Provavelmente tinha sentido medo ou me assustado, mas ele apostou e deu certo. “Sempre admirei meu pai. Ele era o mais fantástico, brilhante e deslumbrante de todos. Sempre foi uma referência em minha vida”.

Aproveitando o assunto medo, passei a ter pavor de ficar sozinha no escuro porque em uma noite minha mãe me levou a um centro espírita – eram tantas coisas que eu não conhecia e não entendia. Lembro que escutei gritos e barulhos e minha mãe não estava perto, havia entrado em uma sala. Para mim era um espanto. Coisa difícil de compreender.

Uma das datas que comemorávamos era o Natal. Minha mãe colocava o mesmo modelo de vestido em mim e nas minhas irmãs. “Era horrível.” Tinha também as festas de aniversário. Comemorávamos com animadas reuniões, no meio de uma grande família, a casa toda enfeitada. Todos os anos os vizinhos e amigos eram convidados para essa data especial. Colaboravam trazendo doces e salgados. Minha avó era sempre responsável pelo bolo. Eram eventos festivos, aguardados com palpitante antecipação. Uma das coisas que sempre gostei – e ainda gosto – é a casa cheia.

Estudei em uma escola que gostava muito: SESI. O espaço é gigante. Ao entrar, tem uma área arborizada e em seguida um prédio para cada lado: o do Ensino Médio é redondo e o do Fundamental é mais retangular. Ao fundo, ficam as quadras. Descendo tem as piscinas e adiante um parquinho. Ao seu lado, quadras de tênis e basquete. Também tem ginásio, restaurantes, sala de troféus, sala de teatro, vestiários e tantos outros lugares – incrivelmente fascinante para qualquer criança.

Ilustração de  Marianna Dias

No SESI, como em qualquer outra escola, o estudo era levado muito a sério. Ficar de conversa na sala ou bagunçar não era o ideal. Tive várias professoras e gostei de todas, mas não lembro seus nomes. Só lembro o nome de uma: professora Magali. Todos os dias vinha de saia longa e usava um coque alto. Certa vez, fui chamada à lousa para fazer um cálculo de divisão. Quase caí dura de susto e vergonha por não saber resolver. Ela ficou lembrando disso o tempo todo para o grupo, o que não melhorou nada. Me senti ridicularizada diante da classe inteira. Foi traumatizante. A mágoa virou raiva e tomei a firme decisão de mostrar-lhe do que era capaz: aprendi a solucionar a conta sozinha.

Continuei estudando lá. Vanessa era minha amiga e era muito bom contar com ela para enfrentar os meninos – era bem encorpada. Convivi com outras colegas que não eram tão íntimas. Teve uma vez que contei um segredo a uma delas – cometi um erro. Virou uma fofoca: todos ficaram sabendo o nome da pessoa de quem eu gostava, inclusive a própria. Não colocamos as coisas em pratos limpos e, por isso, esse episódio me fez perder, de certo modo, para sempre a confiança implícita e incondicional que tinha no “gênero humano”, ou, melhor dizendo, a minha crença na palavra dos amigos.

Ao passar dos anos fui me sentido mais independente, pois comecei a voltar da escola para casa sozinha. Costumava pegar três ônibus para ir junto com minhas amigas. Poderia pegar só um direto. Certo dia, estava muito cansada e resolvi fazer o trajeto mais curto, mas minhas amigas não gostaram da ideia e, por isso, aprontaram uma pegadinha que me tirou do sério: chamaram a atenção de todos gritando que eu havia roubado o salgadinho que estava em minha mão.

Tenho uma lembrança dessa época que hoje sinto vergonha: minhas amigas e eu nos encontrávamos para dançar. Usávamos uma camiseta que estava escrito “100% axé”. Nossa banda preferida era Psirico. Depois da faculdade meu gosto mudou. Só o que não mudou – nada de nada de coisa nenhuma – foi meu paladar: continuo gostando de hambúrguer e não apreciando bebidas alcoólicas, apesar de pessoas próximas a mim consumirem com frequência. Tenho trauma, por isso nunca experimentei e continuo sem vontade de experimentar. Prefiro me divertir de outros jeitos: surfar, assistir filmes, ler livros e dançar forró.

Assim que terminei o 3o ano do Ensino Médio fui para Araraquara fazer faculdade de Pedagogia. O mais difícil dessa mudança foi me despedir dos meus familiares – houve abraços, beijos e lágrimas. No começo tive que morar sozinha e não foi nada fácil. Lembro-me da primeira vez que fui comprar comida sem companhia: cheguei ao açougue e pedi 100g de carne, pensando que era o suficiente. O açougueiro perguntou qual tipo de carne eu queria e fiquei sem palavras. Pedi licença e liguei para o meu pai, ardendo de vergonha. Mais uma vez meu pai foi meu “professor”: me ensinou a comprar carne, inclusive a quantidade adequada.

Depois desse episódio percebi que não era tão independente quanto imaginava, precisava aprender a me virar sozinha. “Foi ruim não ter as coisas prontas, a roupa lavada e a comida feita, mas consegui outras coisas: não ter hora pra chegar, não ter que falar de tudo, poder decidir”.  Um bom começo foi abrir uma conta no banco sem ajuda. Apesar de ter uma conta, o dinheiro para me manter não era o suficiente. Então, encontrei sete colegas para dividir as despesas. Morando fora conheci algumas pessoas e saía com elas. Quando acabou a faculdade, voltei para São Paulo, para a casa dos meus pais.

Ilustração de Sofia Pereira Leite e Gabriela Fontana

       Na juventude o perigo é a nossa diversão. Queria muito fazer uma viagem para a praia. Convidei a minha amiga, mas estávamos sem dinheiro. Tivemos a “infeliz” ideia de pedir carona na estrada. Fizemos uma placa escrita “Santos” e ficamos no acostamento da estrada esperando alguém nos levar. Um gentil caminhoneiro parou e nos deixou lá. Hoje em dia eu não faria isso porque os perigos não são iguais aos daquela época. Graças a essa experiência, eu lhes aconselho: nunca pegue carona na estrada.

Amadureci. Antes achava que o mundo era só o que estava a minha volta. Não sabia que ele era tão grande assim. Eu não viajava, minha família não tinha condições. Fiz minha primeira viagem internacional com uma amiga. Fomos para Miami, alugamos um carro e fomos dirigindo até Orlando. A estrada era muito boa, mas dava sono. Quanta coisa curiosa, quantas atrações aquela estrada tinha para mim e minha amiga… A gente observava de ponta a ponta. Foi uma “chuva” de aventuras em minha vida. Viajar para mim é sempre bom. Tenho uma grande vontade de conhecer a Nova Zelândia e ficar um tempo por lá.

Quando você fica adulta se arrepende de algumas coisas. Eu mesma me arrependi. Comprei um carro e fiquei afundada em dívidas. Também fico indecisa, principalmente com coisas sérias, como o pedido de casamento que eu recebi do Rafael. Fiquei com “borboletas no estômago”, pois era uma decisão muito difícil de ser tomada. Aceitar o meu corpo foi uma fase difícil, levou tempo. Hoje em dia, não me preocupo mais. Deixei os obstáculos da vida de lado e fui.     

No futuro eu penso em passar um tempo fora do Brasil e já pensei em mexer com investimento. Vou me casar em breve e gostaria de ser mãe de um menino e uma menina.

Não tenho tanta experiência para dar conselhos. Tem que ser muito sábia. Eu não adquiri tudo isso. No entanto, nunca fiz mal para ninguém e me orgulho disso. Expectativa? A curto prazo, continuar no 4o ano e me tornar professora titular. A longo prazo, ser feliz para sempre, pois gosto muito de contos de fadas desde pequena. Sempre tive muita imaginação e sonhava em ser como a Ariel: morar embaixo da água.

Essas são algumas das minhas memórias. Espero que viva muito mais e ganhe novas histórias para contar. Certamente algumas vão ser boas, ruins, surpreendentes e marcantes. Todas farão parte da vida. Vou seguir em frente com cara, coragem, força e amor.

Fotografia de Ana Reibel Annenberg

Texto: Alunos do 5o. ano D.

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