Andando, Correndo e Vivendo-A história da quase índia que virou avó

Marina Segre

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Ela não nasceu na capital paulista, mas em um local muito distante e até mesmo selvagem, com histórias de guerras muito marcantes para todos os habitantes desse lugar, de ataques de onças e de outros bichos e brigas de índios. Não estamos falando da África ou da Índia, estamos falando do conhecido sertão da Bahia, mas não apenas do sertão da Bahia… Da Bahia do cerrado…. Do centro do Brasil na metade do século passado.

Essa história começou em 1948 em uma fazenda chamada Riachão do Aricobé, no vilarejo de Missão de Aricobé, um distrito do município de Angical na Bahia. Lá, nasceu a filha primogênita de uma família de pequenos comerciantes, que recebeu o nome de Neuracy, “aquela que faz o bem” segundo os Índios Aricobés. Ela não nasceu em um hospital ou em maternidade, mas sim das mãos de Dona Neguinha a parteira mais experiente de toda a região.

A ligação deste local com a cultura dos índios Aricobés é profunda e lembra a época que os Jesuítas estiveram nessa região. Os padres jesuítas, converteram os índios para sua religião. Esses índios viveram muitos anos com a proteção dos padres porque nessa época eram muitos sagrados e quem matava um deles era punido para sempre. Daí a razão de um nome tão diferente e indígena para uma pequena garotinha que viveria muitas aventuras ao longo de sua vida.

 Nessa região não havia quase nada, não havia hospitais, ou bancos, não haviam farmácias, supermercados ou ruas asfaltadas. Segundo Neuracy, era muito difícil sobreviver.

Neuracy (Neura) tinha quatro irmãos, Emílio (Neto), Manoel (Neuri), Niura e Gisele (Gika). Todos moravam em uma casa própria bem simples, mas organizada. A casa era feita de materiais da região ― como se fosse a história dos 3 porquinhos ―, argila, madeira do cerrado e telhas de barro – nessas casas era comum se encontrar um besouro que transmitia uma doença que fazia o coração ficar grande ― esse remédio ainda não existe ― o Besouro Barbeiro.

Ela era apegada a seus dois tios, chamados Dionísio e Valdemar, porque eles eram companheiros e estavam sempre prontos para brincadeiras. Em uma dessas brincadeiras Neuracy quase foi sufocada por uma mandioca crua que o trio resolveu comer no meio da mata.

Com 6 anos de idade ela deixou sua terra natal-que ela amava- com sua família migrando para o Estado do Paraná, onde o governo, através da companhia Inglesa Norte do Paraná, que construiu cidades, pontes, ferrovias e rodovias, estava vendendo terras a preço muito barato. A viagem até lá não foi fácil: “Eu fiz uma parte da viagem de “Vapor”, outra de trem e outra de ônibus. Foram uns 15 dias de viagem e quando estávamos no rio São Francisco, o vapor quase afundou durante uma tempestade. Foi minha avó que segurou à força o capitão do navio e o obrigou a assumir novamente a navegação, porque ele estava quase se atirando no mar”.

Quando eles chegaram ao Paraná, o pai de Neuracy comprou uma pequena, mas útil, propriedade e abriu um comércio de Secos e Molhados, além de um açougue. Tudo isso com uma ajuda que tiveram do avô para que seus pais começassem a vida.

Como em Mendeslândia, distrito de Nossa Senhora das Graças, no norte do Paraná, não havia escolas Neuracy, junto com dois de seus irmãos foram enviados a uma cidade do outro lado do Rio Paraná, chamada Presidente Prudente. Lá todos poderiam estudar para um dia serem “doutores” porque seus avós queriam que eles forem médicos.

A primogênita de Francisca e Anfilófio, era uma ótima aluna, na verdade, uma das melhores de todo o colégio interno das três freiras Beneditinas de Tutzing, que fundaram o Educandário Cristo Rei em Presidente Prudente em 1937. Suas brincadeiras favoritas eram: queimada, amarelinha e principalmente peteleco, nome que era usado para a brincadeira com bolinhas de gude, na qual ela era a maioral. Nessa época, ela pensava em ser freira, professora ou psicóloga.

Na adolescência ela nunca saia de casa, porque sua casa ou era o Colégio Interno, ou era o comércio dos pais em um pequeno vilarejo com floresta e muitos perigos ao redor. Não fazia travessuras e ajudava com as tarefas na casa, no comércio e no açougue. Não se apaixonou por ninguém nessa época.

Durante a faculdade de Pedagogia, fez um curso de teatro em Presidente Prudente e durante a peça Orfeu e Eurídice, conheceu o homem de seus sonhos. Na peça ela era Eurídice e ele era Orfeu. Como na mitologia (Orfeu e Eurídice não tiveram sorte no relacionamento), Neuracy e Hilton se separaram depois de 3 filhos e 10 anos juntos.

Seus filhos, quando crianças, aprontavam poucas e boas. Em uma dessas traquinagens, Emilio – o filho do meio – a escondida com seu skate desceu a toda velocidade uma rua perigosíssima na contramão. Por coincidência Neuracy estava em seu fusquinha subido a mesma rua e por pouco não atropelou seu próprio filho. Quando ela se deu conta do ocorrido e percebeu que o garotinho do skate era seu filho, quase desmaiou. Emilio ficou uma semana de castigo. Já seu filho César, o mais velho, aprontou com ele mesmo: foi brincar com uma garrafa de álcool e tentou fazer um círculo de fogo entorno de um grande formigueiro. Para sua surpresa escutou um barulho estranho saindo do interior do frasco de álcool e sua curiosidade o impeliu a olhar para o seu interior. Quando César pegou o frasco e mirou o olhar para seu bocal recebeu um sopro de ar quente e fogo diretamente nos olhos. Resultado: não prejudicou a sua visão, mas queimou todos os seus cílios. Fábio, o mais novo, também aprontava e uma que ficou na memória foi quando ele aparou os pelos de uma cachorra de estimação para escrever seu nome em uma das coxas do animal. Um tio chamado Emilio (o mesmo nome do filho do meio de Neuracy), achou que seus sobrinhos haviam marcado a cachorra com ferro quente! E saiu gritando a plenos pulmões: “Marcaram a cachorra com ferro quente!!! Marcaram a cachorra com ferro quente!!!”

Também as babás concordadas por Neuracy aprontaram algumas. Uma delas costumava aplicar fita adesiva na chupeta do Fabio, quando ninguém estava em casa. Uma outra gostava muito de passear de bicicleta, mas como não poderia deixar todas as crianças em casa sempre levava alguém, geralmente contra a vontade, na garupa. Após descer uma grande ladeira a toda velocidade com César chorando ela acabou sendo descoberta e precisou ser demitida. E esses foram apenas dois de muuuitos outros episódios.

Como Neuracy além de lecionar, gostava muito de fazer coisas diferentes acabou conseguindo um emprego como radialista e logo teve seu próprio programa, que era feito para crianças. Os anos se passaram e seu programa transformou-se para atender seus fãs agora adolescentes. Assim, o programa infantil de Mara Lívia, se reinventou no programa “Menudos de Mara Lívia”. Mara Lívia era seu nome artístico, o dono da radio havia achado estranho o nome Neuracy.

Neuracy não parava, após se aposentar como professora abriu uma escola de educação infantil chamada Escola Monteiro Lobato. Ela era fã de Monteiro Lobado e por isso nunca acentuou o nome de seus filhos, porque ela dizia que Lobato era contra acentuações desnecessárias. Nesta escola havia poucas classes, mas muito espaço, muitas árvores como mangueiras, jabuticabeira, umbuzeiro, coqueiros, abacateiro e seriguela. Além disso, havia galinhas garnisés, jabutis, porquinhos-da-índia, coelhos e muitos pássaros, todos criados soltos.

É protagonista do filme que está escrevendo para si mesma, e a cena é longa. Já se passaram muitos, anos e ela ainda promete surpreender no final…. Sua persistência é admirável, assim como sua coragem, seus medos, suas aventuras, suas escolhas e seu jeito de ser. Tudo deveria estar em uma tela de cinema. Afinal, é tudo história!

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